quinta-feira, outubro 23

Seção TOP 5 - nº 4

TOP 5
Nº 4


5 MÚSICAS INTERNACIONAIS (NÃO-CLÁSSICAS E NÃO-JAZZ)


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DANIEL OLIVEIRA



1 - Girl from the North Country, Bob Dylan

Ao compor Girl from the North Country - em talvez três, quatro acordes -, Dylan, sem o perceber, sobe às nuvens, conversa com Deus e descobre que a natureza, a vida, o amor, tudo que há de belo no mundo, está abaixo dessa melodia criada por mãos e voz humanas.

2 - ...And she closed her eyes, Stina Nordenstam

Uma devoção incompreensível. Toda vez que preciso escrever um texto, estudar para a prova, rabiscar ficção, esquecer alguma desavença, torcer pelo Corinthians, enfim, quase tudo, eu ponho essa música de menos de 2 minutos para escutar.

3 - Perfect Day, Lou Reed

Nunca procurei entender o significado da letra desta música. E nem quero saber. Prefiro assim: abstrair apenas a expressão “perfect day” e me obrigar a colocá-la como música de acompanhamento sempre que imagino uma situação solene: formatura, carnaval, velório, ou o fim do mundo.

4 - The Bourgeois Dream of Some White Trash Kid, As the Poets Affirm

Tenho alguma ligação espiritual com o Canadá: sempre exagero muito mais do que o necessário as obras que de lá aprecio. Quando li Saul Bellow e descobri que ele nascera canadense, quase pensei: “ah, então está explicado”. Na música é pior ainda: só Deus sabe que argumentos utilizo para defender artistas como Leonard Cohen, The Arcade Fire ou As The Poets Affirm. Sendo assim, creio ser esta a única maneira de explicar a presença de The Bourgeois Dream of Some White Trash Kid neste TOP 5.

5 - Mr. Tambourine Man, Bob Dylan

Assisti um documentário e vi Dylan tocando tal música. O contexto, a postura e a imagem, entre outros, me fizeram acreditar que a grande música não é apenas o sensorial. Os gênios sabem disso; eles ultrapassam esse primeiro plano. Dylan ultrapassou mais um pouquinho.

RODRIGO L.


1 - Blackbird, The Beatles

Paul sempre teve tudo o que faltou a Lennon. O "tudo" a que me refiro é, naturalmente, Blackbird - composição na qual dificilmente se consegue depreender o que há de mais tocante: se os acordes iniciais, se os versos finais, se aqueles passarinhos assoviando pelo meio.

2 - Devil Got My Woman, Skip James

Apreciar um blues é como apreciar um soneto. E só com essa canção começo a percebê-lo - meu desinteresse e, mais, minha aversão ao estilo desaparecem a partir daqui.

3 - Tom Joad, Woody Guthrie

Diante da dificuldade de se fazer listas, usemos recursos desonestos: aqui estão Woody Guthrie e sua canção para que possam representar toda a tradição folk estadunidense.

4 - Volver, Carlos Gardel

Ter um tango favorito é questão de bom senso e decência. Volver, a maior dor da música platina, é o meu.

5 - I Walk the Line, Johnny Cash

O surpreendente poder das canções de Cash não se prende a um tema ou estilo: esteja matando homens em Reno ou fazendo promessas amorosas, sua música e sua voz preservam essa capacidade assustadora de devastar.

DAVI LARA


1 - Chan, Chan, Buena Vista Social Club

A impressão angustiante que fica ao escutar esta canção é que ela não começa nem tem fim. A sua representação visual seria uma espiral girando, sem sair do lugar, em volta de seu eixo. O registro dela, do modo como foi feito, é um acontecimento insólito. Eu, cá na minha intimidade, sempre arregalo os olhos diante do prodígio.

2 - A Day in a Life, The Beatles

Para representar o Beatles, sem que os ingleses ocupem, no mínimo, três das cinco vagas, A Day in a Life é perfeitamente conveniente. Por sua representatividade histórica, última faixa do revolucionário Sgt. Pepper's; pelo experimentalismo; pelo arranjo; canção composta, a rigor, pela hábil união de duas canções, a de John e a de Paul - Harrison que me perdoe. Por isso tudo... Mas a verdade é que quando a voz de John irrompe, pairando sobre o piano, as cordas, e a discreta e em constante ascensão bateria, não é difícil esquecer toda a obra dos Beatles.

3 - Good Vibration, Beach Boys

Todo o Smile está contido em Good Vibration. Sem ser minha predileta do lendário álbum que superaria o Sgt. Pepper´s (e, tardiamente, talvez o tenha feito), é, sem dúvida, a mais imponente.

4 - Oh What a World, Rufus Wainwright

O meu gosto, tal como o gosto geral e, portanto, fáceis e óbvias razões, apontavam para Cigarettes and Chocolat Milk. Porém, a grandiloqüência é coisa para poucos. Em Oh What a World, Rufos é gigante, farta-se em excessos, mas nada sobra.

5 - I’m calling you, Alguém

Não estou certo quanto ao nome dos intérpretes ou do(s) compositor(es). Na verdade, acabo de procurá-los, sem êxito, em um site de pesquisas. Bob Telson é o único nome confiável. Não tem problema, o que conta é a canção, premiada canção da trilha sonora de Bagdad Café (o tal do Bob Telson é o responsável pela trilha). Nunca gostei muito de canções em trilhas sonoras, preconceito bobo, mas preconceito meu, portanto, importante para mim. Depois de ver o citado filme, vejam vocês, ele me fisgou pela canção.

quarta-feira, outubro 15

Seção UM CONTO! - nº 5

5ª Seção UM CONTO!

15/10/2008


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1) O INCIVIL MESTRE-DE-CERIMÔNIAS KOTSUKÉ NO SUKÉ, Jorge Luis Borges
por Davi Lara

Neste mesmo fundo de poço, algum tempo atrás, troquei duas palavrinhas com o leitorado moedotecário sobre História Universal da Infâmia, de Jorge Luis Borges. Nesta ocasião me comprometi em falar sobre o conto O incivil mestre-de-cerimônias Kotsuké no Suké. Como sou homem de palavra, ei-lo.

Neste post, comparei os contos do primeiro livro de Borges a alguns filmes americanos, sobretudo os filmes de Tarantino, pelo uso comum da violência como uma opção estética. Também distingui os contos por hemisfério. As narrativas orientais, eu disse, são relativamente mais equilibradas. O caso particular, sua temática, o que o equilibra sobre suas folhas, de O incivil mestre-de-cerimônias Kotsuké no Suké é mais ou menos conhecido por nós desta banda do mundo. Trata da honra oriental, especificamente japonesa, que torna possível os absurdos (para nós, ocidentais) haraquiri ou a prática Kamikaze. A honra japonesa, por exemplo, é explorada pelo filme OldBoy, que no mais é um filme americano, e pode ser confundida com a vingança.

Minha insistência na referência cinematográfica não é injustificada. Borges insiste, ele mesmo, na relação da história que ele ora tergiversa com o cinema: “é a mais repetida inspiração do cinema japonês”. A exemplo, no prefácio para edição da Globo, Alexandre Eulálio cita Chunshingura acompanhado de elogios.

Kotsuké no Sukê, mestre de cerimônias encarregado de preparar a recepção a um enviado imperial, com arrogância, faz imperdoável ofensa ao senhor da Torre de Ako que lhe aplica em retorno um corte na face e por isso é condenado ao haraquiri. Os quarenta e sete capitães da Torre de Ako esperam quase dois anos e se vingam do mestre de cerimônias desonroso: em seguida cometem suicídio. O atípico neste conto é que a infâmia é superada pelo heroísmo, apesar do título querer indicar o contrário, destacando o desonroso mestre de cerimônias.

A voz do narrador interfere de modo comovente no final da narrativa, enquanto nas outras narrativas se distancia da história por não convir ao escritor misturar-se com iniqüidades. Finaliza lembrando-nos que lemos um livro de versões e justificando-se o empreendimento e o ofício: “Este é o final da história dos quarenta e sete homens leais – salvo que não tem fim, porque os outros homens que não somos leais talvez, mas nunca poderemos de todo a esperança de sê-lo, continuaremos a honrá-los com palavras.”


2) NO CIRCO, Aleksandr Ivánovitch Kuprin
por Daniel Oliveira

Do ponto de vista estrutural e tradicional, os contos de Aleksandr Ivanovitch Kúprin não são exatamente contos. Alguns têm poucas páginas, outros muitas, mas em todos você só percebe que já foi domado quando as páginas derradeiras saltam aos olhos. É admirável como Kúprin põe em prática seu método de ambientação do leitor: a riqueza de detalhes é tanta que faz qualquer um esquecer o tema principal da história. O que acabei de afirmar parece absurdo, mas não é; e, como exemplo, falarei brevemente sobre a obra-prima No Circo.

O lutador greco-romano Arbúzov é uma das principais atrações do circo local. Está prestes a enfrentar seu rival americano pela terceira vez para decidir quem é o campeão, já que na primeira luta o russo ganhou e, na segunda, o americano. Arbúzov está morrendo: o começo do conto o mostra sendo examinado pelo doutor Lukhovítski, o qual tenta, em vão, proibir-lhe o combate (já aqui ocorre a sublimação do tema central, ou melhor, do personagem principal: dá-se a entender que o protagonista é o médico, e não o lutador). O dia da luta, enfim, chega; Arbúzov não consegue ser dispensado pelo impiedoso diretor do circo, e acaba por lutar. Após a derrota, volta ao camarim para descansar, deita em qualquer amontoado de roupas e morre – fim.

O “problema” aqui é que o autor não faz qualquer alusão à morte. Salvo o começo do conto – um conto de quase 30 páginas –, no qual o médico diz que Arbúzov, se não se cuidar, poderá morrer (mas, ainda assim, só dali a muitos anos), não vemos qualquer resquício de fatalidade nem por parte das circunstâncias, nem do herói, e muito menos da prosa do autor. O tema do conto é este: a morte. Tema que nivela qualquer história literária de qualquer gênero; é o que chamaríamos de “tema maior”, tema do qual nenhum leitor consegue ficar indiferente. Mas, nesse conto, por alguma razão, nós ficamos. Nós simplesmente deixamos de lado o fato de que Arbúzov corre risco de vida, e só queremos saber se ele vai ganhar a luta, se sua honra vai ser salva, e outra pequena série de curiosidades mal-saciadas que o grande contista russo desperta no leitor devido à já referida superabundância de detalhes (detalhes descritivos, psicológicos, formais, etc).

Desse modo, Kúprin escreve uma comovente história, que nos fascina desde a prosa ultra-russa ao humanismo inveterado, passando pelo cativante temperamento do personagem principal.


3) MEU PRIMEIRO GANSO, Isaac Bábel
por Rodrigo L.

As pontuais releituras que faço dos contos de Isaac Bábel continuam a me surpreender. A violência de sua prosa, até aqui, permanece solitária: autor nenhum consegue acompanhá-lo nessa literatura extremamente engajada e, ainda assim, cheia de um valor artístico tão bem definido. O Exército de Cavalaria, coletânea com mais de trinta contos, é um clássico do século XX que, a meu ver, não recebe o crédito devido - seu estilo possui uma originalidade comparável à que encontramos nas grandes figuras canônicas do modernismo europeu.

A rigor, todos os contos registram as impressões de guerra de um judeu intelectual e míope (identificado, raras vezes, como Kirill Vassílievitch Liútov) - homem inadaptado à batalha e à vida entre os cossacos rústicos numa época de pogroms constantes. Essa sua inadequação ao campo de batalha e as dificuldades de convivência com os bolcheviques (que implicam com seus óculos, sobretudo) parecem nortear todas as suas ações e, naturalmente, todos os seus escritos. Está encenada, de certa forma, a problemática uniformização proposta pela revolução.

Meu primeiro ganso, um dos melhores contos da coletânea, mostra como este narrador consegue se inserir na convivência dos cossacos: numa tarde em que "o sol moribundo exalava seu hálito rosado no céu" (seu poder imagético é constantemente posto à prova em esquisitas metáforas e analogias - e sempre alcança êxito), atormentado pela fome e cheio de raiva contra uma senhora polonesa que se nega a preparar-lhe uma refeição, ele agarra um ganso e, pisando sobre o seu pescoço, mata-o e obriga a senhora a assá-lo. Imediatamente, ouve um dos cossacos dizer: "O rapaz é dos nossos".

Durante a noite (na qual, sobre o quintal onde estavam, a lua "pendia como um brinco barato"), ele lê para os novos companheiros, em voz alta, o último discurso de Lênin publicado no Pravda - e, juntos, dormem num celeiro, "um aquecendo o outro, com as pernas entrelaçadas, sob o teto esburacado que deixava entrar as estrelas". Esta aparente ligação entre eles, conseguida por meio da violência e pelo desejo conjunto da revolução, todavia, também se revela frágil - pois Liútov, enquanto dormia e tinha os sonhos invadidos por mulheres, sentia que o seu coração, "banhado pela matança, gemia e sangrava".

Sua solidão, mesmo com uma aproximação tão íntima com os cossacos, se acentua. E, por mais que confie na revolução (muitas vezes ridicularizando ferozmente quem não a aceita ou quem a critica), Liútov persiste em sua dedicação e em seu sacrifício diários - desconfortável e espiritualmente arruinado, segue em busca da compreensão desse rastro de barbaridade e sangue junto ao qual caminha.