2ª Seção UM CONTO!
15/06/2008
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1) YVETTE, Guy de Maupassant
por Davi Lara

Falar de contos e não falar de Maupassant é imperdoável. Todo manual literário que se debruce sobre as potencialidades da narrativa curta parece descrever a obra de Maupassant - talvez o façam. É um dos escritores exemplares, um dos gigantes que sombreiam tudo que se aproxime. Não me lembro quando ele se tornou o meu predileto; creio que quando nasci. Tanta propensão me advertiu, tentei não gostar dele - obviamente, falhei.
Descrever o estilo de Maupassant é discorrer sobre a concisão. É um trabalho obsessivo onde busca-se manter somente o necessário. É um trabalho intelectual, pois é preciso uma compreensão parcial da história para saber o que é gratuito, eleger o que é imprescindível. As escolhas de Maupassant são marcadas pela aspereza com que trata suas letras e as suas personagens. Com inclinação para as pessoas ordinárias e marginais, as vítimas das circunstâncias, que não têm para contar nem a si próprias. Mas é o caráter excepcional de Yvette que o faz se destacar entre tantas narrativas curtas monumentais.
A começar pela sua extensão, bastante longo, Yvette é mais adequadamente classificado como um conto-novela (pode-se observar que, mesmo com muitas páginas, a concisão de seu estilo, de aproveitar tudo o que esta escrito, em suas novelas, as aproximam do conto). A perspectiva do olhar sobre a vida mundana é um ponto de distinção, dos mais importantes. O sub-mundo das prostitutas e jogadores, ao se opor à mediocridade, é enaltecido como uma opção legítima. Mas sem incidir numa visão fantasiosa, ao contrário, não falta a ironia.
Mas o que se distingue, é Yvette, a personagem título, filha de uma cortesã e, em muitos aspectos, sua oposição. A mãe ostenta uma cabeleira negra, olhos sugestivos e um buço discreto sobre os lábios; ela, loura, jovem e virgem. É bonito ver como Maupassant estrutura essa personagem. Dividido em quatro partes, somente na terceira parte é explicitada a personalidade de Yvette, anteriormente apenas sugerida. Uma quase tragédia, Yvette é uma história sobre a inocência. Maupassant, que nunca absolve a suas criaturas, nos dá a oportunidade de o ver relativizar a corrupção e, por conseguinte, acreditar na inocência.
2) A DAMA DE ESPADAS, Aleksandr Púchkin
por Daniel Oliveira

Se Tolstói tem o seu A Morte de Ivan Ilitch e Tchekhov tem Enfermaria nº6, Aleksandr Púchkin é o autor de A Dama de Espadas, o conto-novela em questão. Para compreender a importância deste gênio russo, só mesmo comparando-o a um Poe, um Dante ou um Shakespeare; Púchkin foi o pai da literatura russa moderna, e, escrevendo romances, contos, poesia e poemas épicos, influenciou todas as gerações posteriores, dando origens a mestres como Tolstói, Turguêniev ou Maiakóvski. Fica até difícil decidir em qual área sua habilidade beira à perfeição: se na prosa ou no verso.
Segundo Boris Schnaiderman (um exímio tradutor, diga-se de passagem), A Dama de Espadas “lembra muito os contos de E.T.A. Hoffman”; com efeito, de acordo com as minhas leituras de apenas 3 contos do escritor alemão, devo concordar com essa afirmação: o tom sinistro só é desmembrado no meio do conto; mas, a partir daí, não o abandona mais. Os dois contistas, no entanto, se tornam discrepantes quando percebemos a textura cômica de Púchkin: neste conto não é difícil notar a pena ferina do autor, mesmo que aí contenha, ainda segundo Schnaiderman, “rasgos e inspirações para o tema central de Crime e Castigo”.
Ao ler Púchkin e Tchekhov traduzidos pela mesma pessoa, acabei lendo 3 livros. De fato, quem procura descobrir as influências de Púchkin em Tchekhov facilmente as encontrará; se a tradução poética já é quase intolerável, a tradução de prosa acaba gerando um sub-estilo oriundo de um “autor fantasma” que escreveu sobre o manuscrito original. A grande diferença entre os dois é a já conhecida maestria do segundo em levar ao ápice o poder de sugestão. Além disso, devo dizer que, geralmente, enquanto as implicações cômicas de Púchkin partem de idéias, as de Tchekhov, quando existem, provém dos fatos em si.
O enredo de A Dama de Espadas é o seguinte: um sujeito, após ouvir a história sobre uma senhora que sempre advinha as cartas no jogo, resolve ir atrás desta para ver se a afortunada lhe revela o segredo. Não direi mais nada: só pela primeira frase desse post já vale a leitura. O máximo que posso fazer é mais uma vez deixar registrada aqui a minha profunda admiração por Boris Schnaiderman, este honorável brasileiro.
3) CANTOS, Antonio di Benedetto
por Rodrigo L.
Benedetto é o que está de braços cruzados.
Antonio di Benedetto me parece ser a mais nova descoberta e aposta do mercado editorial brasileiro. Novos romances e coletâneas de contos seus surgem nas livrarias a cada mês. Considero uma atitude justa: a produção do autor argentino é digna das mais altas prateleiras da literatura hispano-americana. Cantos, presente nos seus Cuentos del Exilio (inédito no Brasil), representa bem a sua arte: o estilo peculiar, difícil de ser enquadrado nos termos correntes da literatura argentina, é quase cinematográfico (veloz, altamente descritivo e de aparente simplicidade) e o tema (concentrado na impossibilidade de realização e na amargura que disso se alimenta) são paradigmas presentes em quase toda a sua produção.
Trato de ilustrar: leiam Cantos e lá perceberão, de imediato, a concisão da frase inicial - que descreve um amor ingrato que não prosperou - e a forma abrupta com que, já no segundo parágrafo, os amantes arrependidos se reencontram. Mais oito curtos parágrafos e todo o passado deles é discutido, rememorado por meio de sentenças igualmente curtas e, enfim, a mulher tem seu corpo destroçado por um ônibus.
O seu pendor e a sua perícia para a construção e a descrição de imagens surge na seqüência, ao descrever o rosto "bastardo" com que a jovem senhora ficara após o acidente - irreconhecível, "já não era ela". Ao final, ao confessar que ainda a busca, assinala a condição desditosa de todo ex-amante: arrepender-se, procurar pela imagem que tinha do velho amor e que, a partir do momento em que se dá a separação, morre – atropelada por um ônibus ou apenas afastando-se irremediavelmente pelas calçadas.
Clique aqui para ler o conto.
4) DISSOLUÇÃO, Mayrant Gallo
por Eder Fernandes

Em algum momento da conversa de ontem, quando eu e mais dois amigos estávamos trocando opiniões sobre alguns escritores baianos contemporâneos, o nome de Mayrant Gallo foi citado. "Mayrant é um bom professor, ele sabe fazer a coisa. Os cursos que ele ministrou aqui na UEFS foram muito bons. Um foi sobre o conto policial. Muito bom! Ele sabe mesmo como funciona o mecanismo do conto", disse um amigo. O outro, quase o interrompendo, indagou: "Mas por que é que ele não consegue levar esse conhecimento para os contos dele?" A resposta veio seca e inapelável: "Talento. Falta talento". Eu, que estivera calado, apenas reiterei a resposta com a cabeça. E sim, falta-lhe algum talento.
O conto Dissolução, do livro O Inédito de Kafka (2003), ilustra bem essa deficiência de Mayrant, a de não saber pôr em prática seu suposto conhecimento sobre narrativas curtas. Diz-se em todos manuais sobre o conto que este tem que começar muito bem, evitar floreios e digressões que prejudiquem sua agilidade. O conto é essencialmente ágil. Pois bem, não é o caso de seguir manuais, é óbvio, mas o bom começo é uma obrigação primária — qual é o conto de Poe que começa mal? Nesse ponto digo que Dissolução não começa bem. Divagações desnecessárias o prejudicam. Leiam e depois venham concordar comigo. Ele, Mayrant, poderia muito bem cortar os dois parágrafos iniciais.
É bom se dizer que, com um mau começo, ler a página seguinte é uma enorme besteira. Mas eu o fiz. Os erros de composição se atropelam, a ponto de alguns serem rasteiros, como aquele erro mais atribuído ao escritor iniciante, o de se confundir com o personagem que está narrando a estória. Exemplo. O personagem de Dissolução, pelo que se percebe, um burocrata (mal pago ou bem pago, isso não importa) anda pelas ruas de Salvador e pensa em Gregório de Matos, de como o poeta supostamente sentiu asco daquelas ruas. Vá lá que um burocrata mediano leia Gregório de Matos, e até goste dele a ponto de evocá-lo num momento grave de sua existência, como ocorre no conto. Isso, contudo, não é bem encaixado, e a citação soa muito mais como de Mayrant, o autor. Há outros elementos que aparecem e ficam soltos na narrativa. Como, por exemplo, “o espelho”. A todo momento o personagem se refere a um espelho que precisa ter, só que não há uma explicação coerente para isto. Não coerente no sentido óbvio, mas coerente com a estrutura, com o enredo do conto. Não há, e se há não ficou claro a mim, ao menos.
Como a idéia desta seção é primeiramente a da sugestão (sugerir um conto, um autor, uma idéia sobre um conto), não me compete analisar todos os aspectos de Dissolução, e nem, como alguém poderá dizer, fundamentar minhas críticas, porque elas são apenas frutos da minha experiência como leitor. Portanto, leiam Mayrant Gallo e concordem comigo ou não. Pois como bem disse meu amigo Rodrigo L., "gosto não se discute, se lastima".