quinta-feira, outubro 23

Seção TOP 5 - nº 4

TOP 5
Nº 4


5 MÚSICAS INTERNACIONAIS (NÃO-CLÁSSICAS E NÃO-JAZZ)


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DANIEL OLIVEIRA



1 - Girl from the North Country, Bob Dylan

Ao compor Girl from the North Country - em talvez três, quatro acordes -, Dylan, sem o perceber, sobe às nuvens, conversa com Deus e descobre que a natureza, a vida, o amor, tudo que há de belo no mundo, está abaixo dessa melodia criada por mãos e voz humanas.

2 - ...And she closed her eyes, Stina Nordenstam

Uma devoção incompreensível. Toda vez que preciso escrever um texto, estudar para a prova, rabiscar ficção, esquecer alguma desavença, torcer pelo Corinthians, enfim, quase tudo, eu ponho essa música de menos de 2 minutos para escutar.

3 - Perfect Day, Lou Reed

Nunca procurei entender o significado da letra desta música. E nem quero saber. Prefiro assim: abstrair apenas a expressão “perfect day” e me obrigar a colocá-la como música de acompanhamento sempre que imagino uma situação solene: formatura, carnaval, velório, ou o fim do mundo.

4 - The Bourgeois Dream of Some White Trash Kid, As the Poets Affirm

Tenho alguma ligação espiritual com o Canadá: sempre exagero muito mais do que o necessário as obras que de lá aprecio. Quando li Saul Bellow e descobri que ele nascera canadense, quase pensei: “ah, então está explicado”. Na música é pior ainda: só Deus sabe que argumentos utilizo para defender artistas como Leonard Cohen, The Arcade Fire ou As The Poets Affirm. Sendo assim, creio ser esta a única maneira de explicar a presença de The Bourgeois Dream of Some White Trash Kid neste TOP 5.

5 - Mr. Tambourine Man, Bob Dylan

Assisti um documentário e vi Dylan tocando tal música. O contexto, a postura e a imagem, entre outros, me fizeram acreditar que a grande música não é apenas o sensorial. Os gênios sabem disso; eles ultrapassam esse primeiro plano. Dylan ultrapassou mais um pouquinho.

RODRIGO L.


1 - Blackbird, The Beatles

Paul sempre teve tudo o que faltou a Lennon. O "tudo" a que me refiro é, naturalmente, Blackbird - composição na qual dificilmente se consegue depreender o que há de mais tocante: se os acordes iniciais, se os versos finais, se aqueles passarinhos assoviando pelo meio.

2 - Devil Got My Woman, Skip James

Apreciar um blues é como apreciar um soneto. E só com essa canção começo a percebê-lo - meu desinteresse e, mais, minha aversão ao estilo desaparecem a partir daqui.

3 - Tom Joad, Woody Guthrie

Diante da dificuldade de se fazer listas, usemos recursos desonestos: aqui estão Woody Guthrie e sua canção para que possam representar toda a tradição folk estadunidense.

4 - Volver, Carlos Gardel

Ter um tango favorito é questão de bom senso e decência. Volver, a maior dor da música platina, é o meu.

5 - I Walk the Line, Johnny Cash

O surpreendente poder das canções de Cash não se prende a um tema ou estilo: esteja matando homens em Reno ou fazendo promessas amorosas, sua música e sua voz preservam essa capacidade assustadora de devastar.

DAVI LARA


1 - Chan, Chan, Buena Vista Social Club

A impressão angustiante que fica ao escutar esta canção é que ela não começa nem tem fim. A sua representação visual seria uma espiral girando, sem sair do lugar, em volta de seu eixo. O registro dela, do modo como foi feito, é um acontecimento insólito. Eu, cá na minha intimidade, sempre arregalo os olhos diante do prodígio.

2 - A Day in a Life, The Beatles

Para representar o Beatles, sem que os ingleses ocupem, no mínimo, três das cinco vagas, A Day in a Life é perfeitamente conveniente. Por sua representatividade histórica, última faixa do revolucionário Sgt. Pepper's; pelo experimentalismo; pelo arranjo; canção composta, a rigor, pela hábil união de duas canções, a de John e a de Paul - Harrison que me perdoe. Por isso tudo... Mas a verdade é que quando a voz de John irrompe, pairando sobre o piano, as cordas, e a discreta e em constante ascensão bateria, não é difícil esquecer toda a obra dos Beatles.

3 - Good Vibration, Beach Boys

Todo o Smile está contido em Good Vibration. Sem ser minha predileta do lendário álbum que superaria o Sgt. Pepper´s (e, tardiamente, talvez o tenha feito), é, sem dúvida, a mais imponente.

4 - Oh What a World, Rufus Wainwright

O meu gosto, tal como o gosto geral e, portanto, fáceis e óbvias razões, apontavam para Cigarettes and Chocolat Milk. Porém, a grandiloqüência é coisa para poucos. Em Oh What a World, Rufos é gigante, farta-se em excessos, mas nada sobra.

5 - I’m calling you, Alguém

Não estou certo quanto ao nome dos intérpretes ou do(s) compositor(es). Na verdade, acabo de procurá-los, sem êxito, em um site de pesquisas. Bob Telson é o único nome confiável. Não tem problema, o que conta é a canção, premiada canção da trilha sonora de Bagdad Café (o tal do Bob Telson é o responsável pela trilha). Nunca gostei muito de canções em trilhas sonoras, preconceito bobo, mas preconceito meu, portanto, importante para mim. Depois de ver o citado filme, vejam vocês, ele me fisgou pela canção.

quarta-feira, outubro 15

Seção UM CONTO! - nº 5

5ª Seção UM CONTO!

15/10/2008


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1) O INCIVIL MESTRE-DE-CERIMÔNIAS KOTSUKÉ NO SUKÉ, Jorge Luis Borges
por Davi Lara

Neste mesmo fundo de poço, algum tempo atrás, troquei duas palavrinhas com o leitorado moedotecário sobre História Universal da Infâmia, de Jorge Luis Borges. Nesta ocasião me comprometi em falar sobre o conto O incivil mestre-de-cerimônias Kotsuké no Suké. Como sou homem de palavra, ei-lo.

Neste post, comparei os contos do primeiro livro de Borges a alguns filmes americanos, sobretudo os filmes de Tarantino, pelo uso comum da violência como uma opção estética. Também distingui os contos por hemisfério. As narrativas orientais, eu disse, são relativamente mais equilibradas. O caso particular, sua temática, o que o equilibra sobre suas folhas, de O incivil mestre-de-cerimônias Kotsuké no Suké é mais ou menos conhecido por nós desta banda do mundo. Trata da honra oriental, especificamente japonesa, que torna possível os absurdos (para nós, ocidentais) haraquiri ou a prática Kamikaze. A honra japonesa, por exemplo, é explorada pelo filme OldBoy, que no mais é um filme americano, e pode ser confundida com a vingança.

Minha insistência na referência cinematográfica não é injustificada. Borges insiste, ele mesmo, na relação da história que ele ora tergiversa com o cinema: “é a mais repetida inspiração do cinema japonês”. A exemplo, no prefácio para edição da Globo, Alexandre Eulálio cita Chunshingura acompanhado de elogios.

Kotsuké no Sukê, mestre de cerimônias encarregado de preparar a recepção a um enviado imperial, com arrogância, faz imperdoável ofensa ao senhor da Torre de Ako que lhe aplica em retorno um corte na face e por isso é condenado ao haraquiri. Os quarenta e sete capitães da Torre de Ako esperam quase dois anos e se vingam do mestre de cerimônias desonroso: em seguida cometem suicídio. O atípico neste conto é que a infâmia é superada pelo heroísmo, apesar do título querer indicar o contrário, destacando o desonroso mestre de cerimônias.

A voz do narrador interfere de modo comovente no final da narrativa, enquanto nas outras narrativas se distancia da história por não convir ao escritor misturar-se com iniqüidades. Finaliza lembrando-nos que lemos um livro de versões e justificando-se o empreendimento e o ofício: “Este é o final da história dos quarenta e sete homens leais – salvo que não tem fim, porque os outros homens que não somos leais talvez, mas nunca poderemos de todo a esperança de sê-lo, continuaremos a honrá-los com palavras.”


2) NO CIRCO, Aleksandr Ivánovitch Kuprin
por Daniel Oliveira

Do ponto de vista estrutural e tradicional, os contos de Aleksandr Ivanovitch Kúprin não são exatamente contos. Alguns têm poucas páginas, outros muitas, mas em todos você só percebe que já foi domado quando as páginas derradeiras saltam aos olhos. É admirável como Kúprin põe em prática seu método de ambientação do leitor: a riqueza de detalhes é tanta que faz qualquer um esquecer o tema principal da história. O que acabei de afirmar parece absurdo, mas não é; e, como exemplo, falarei brevemente sobre a obra-prima No Circo.

O lutador greco-romano Arbúzov é uma das principais atrações do circo local. Está prestes a enfrentar seu rival americano pela terceira vez para decidir quem é o campeão, já que na primeira luta o russo ganhou e, na segunda, o americano. Arbúzov está morrendo: o começo do conto o mostra sendo examinado pelo doutor Lukhovítski, o qual tenta, em vão, proibir-lhe o combate (já aqui ocorre a sublimação do tema central, ou melhor, do personagem principal: dá-se a entender que o protagonista é o médico, e não o lutador). O dia da luta, enfim, chega; Arbúzov não consegue ser dispensado pelo impiedoso diretor do circo, e acaba por lutar. Após a derrota, volta ao camarim para descansar, deita em qualquer amontoado de roupas e morre – fim.

O “problema” aqui é que o autor não faz qualquer alusão à morte. Salvo o começo do conto – um conto de quase 30 páginas –, no qual o médico diz que Arbúzov, se não se cuidar, poderá morrer (mas, ainda assim, só dali a muitos anos), não vemos qualquer resquício de fatalidade nem por parte das circunstâncias, nem do herói, e muito menos da prosa do autor. O tema do conto é este: a morte. Tema que nivela qualquer história literária de qualquer gênero; é o que chamaríamos de “tema maior”, tema do qual nenhum leitor consegue ficar indiferente. Mas, nesse conto, por alguma razão, nós ficamos. Nós simplesmente deixamos de lado o fato de que Arbúzov corre risco de vida, e só queremos saber se ele vai ganhar a luta, se sua honra vai ser salva, e outra pequena série de curiosidades mal-saciadas que o grande contista russo desperta no leitor devido à já referida superabundância de detalhes (detalhes descritivos, psicológicos, formais, etc).

Desse modo, Kúprin escreve uma comovente história, que nos fascina desde a prosa ultra-russa ao humanismo inveterado, passando pelo cativante temperamento do personagem principal.


3) MEU PRIMEIRO GANSO, Isaac Bábel
por Rodrigo L.

As pontuais releituras que faço dos contos de Isaac Bábel continuam a me surpreender. A violência de sua prosa, até aqui, permanece solitária: autor nenhum consegue acompanhá-lo nessa literatura extremamente engajada e, ainda assim, cheia de um valor artístico tão bem definido. O Exército de Cavalaria, coletânea com mais de trinta contos, é um clássico do século XX que, a meu ver, não recebe o crédito devido - seu estilo possui uma originalidade comparável à que encontramos nas grandes figuras canônicas do modernismo europeu.

A rigor, todos os contos registram as impressões de guerra de um judeu intelectual e míope (identificado, raras vezes, como Kirill Vassílievitch Liútov) - homem inadaptado à batalha e à vida entre os cossacos rústicos numa época de pogroms constantes. Essa sua inadequação ao campo de batalha e as dificuldades de convivência com os bolcheviques (que implicam com seus óculos, sobretudo) parecem nortear todas as suas ações e, naturalmente, todos os seus escritos. Está encenada, de certa forma, a problemática uniformização proposta pela revolução.

Meu primeiro ganso, um dos melhores contos da coletânea, mostra como este narrador consegue se inserir na convivência dos cossacos: numa tarde em que "o sol moribundo exalava seu hálito rosado no céu" (seu poder imagético é constantemente posto à prova em esquisitas metáforas e analogias - e sempre alcança êxito), atormentado pela fome e cheio de raiva contra uma senhora polonesa que se nega a preparar-lhe uma refeição, ele agarra um ganso e, pisando sobre o seu pescoço, mata-o e obriga a senhora a assá-lo. Imediatamente, ouve um dos cossacos dizer: "O rapaz é dos nossos".

Durante a noite (na qual, sobre o quintal onde estavam, a lua "pendia como um brinco barato"), ele lê para os novos companheiros, em voz alta, o último discurso de Lênin publicado no Pravda - e, juntos, dormem num celeiro, "um aquecendo o outro, com as pernas entrelaçadas, sob o teto esburacado que deixava entrar as estrelas". Esta aparente ligação entre eles, conseguida por meio da violência e pelo desejo conjunto da revolução, todavia, também se revela frágil - pois Liútov, enquanto dormia e tinha os sonhos invadidos por mulheres, sentia que o seu coração, "banhado pela matança, gemia e sangrava".

Sua solidão, mesmo com uma aproximação tão íntima com os cossacos, se acentua. E, por mais que confie na revolução (muitas vezes ridicularizando ferozmente quem não a aceita ou quem a critica), Liútov persiste em sua dedicação e em seu sacrifício diários - desconfortável e espiritualmente arruinado, segue em busca da compreensão desse rastro de barbaridade e sangue junto ao qual caminha.

segunda-feira, setembro 15

Seção UM CONTO! - nº 4

4ª Seção UM CONTO!

15/09/2008


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1) O BURRINHO PEDRÊS, Guimarães Rosa
por Rodrigo L.

A música de Guimarães Rosa nunca me passou despercebida. Em todas as páginas que lhe cruzei, percebi-lhe melodia. E O burrinho pedrês é exemplo, talvez maior entre os seus contos (porque nada supera o ritmo de Grande Sertão: Veredas), dessa musicalidade. Não apenas nas constantes referências aos cantos dos vaqueiros e das mulheres do sertão, mas na própria construção sintática de suas sentenças, nas palavras escolhidas e na disposição de parágrafos, pontos, vírgulas - é assim que Rosa compõe. A sucinta descrição da vida de Sete-de-Ouros, que ocupa página e meia no máximo, espera apenas quem a partiture; assim como aguarda um musicista a descrição da "Manhã noiteira, sem sol, com uma umidade de melar por dentro as roupas da gente".

Há quem considere Rosa "metafisicamente primitivo" - e, desde sempre, muita gente se incomoda diante dessa sua franca preferência pela grandiosidade disfarçada sob interiores e homens miúdos: como Riobaldo pode filosofar? Que ousadia permite a Matraga conhecer a vida a fundo? É tolerável, enfim, a pretensão de nos narrar a história de um burro? E o insignificante animal vai só ladeando a boiada - não a persegue e preocupa-se com ela apenas na medida em que ela pode incomodá-lo. Ensimesmado, o burrinho vai se tornando símbolo maior da narrativa - que é repleta de tantos outros. Na visão que os vaqueiros possuem de certos bois (dotando os animais de qualidades morais), nas relações de hierarquia entre os homens sertanejos e em seus códigos éticos, na presença de sorte e azar - em tudo isso, Rosa nos traz não só um grande conto, mas uma tremenda justificativa e prova do valor de sua arte.

2) A AVENTURA DE UM SOLDADO, Italo Calvino
por Davi Lara

Devo começar justificando a escolha deste conto e deste autor para que o leitor se convença de que não desperdiça seu tempo quando freqüenta nosso humilde fundo de poço. Como não pretendo demorar-me, poupo esforços parafraseando o mesmo autor a que me refiro: é melhor ler Calvino do que não ler Calvino. Uma vez sabida essa verdade, passemos às considerações do título em questão.

Se os senhores esperam encontrar a inquietação que marca a construção de uma das grandes obras do séc. XX, há pouco ou nada do fabulista e do experimentador nestas narrativas. Os contos de Amores Difíceis são sóbrios e contidos, tratam de acontecimentos corriqueiros, discretas aventuras que desviam da rotina conhecida e um tanto morta para retornarem a ela. Os motivos para a escolha de A aventura de Um Soldado escapam-me se tento ser objetivo. Se por acaso forço a memória a pedido de um amigo ou para cumprir minhas obrigações bloguísticas, esse é um dos contos que me vêm prontamente. A título de reforço, some-se a efusiva reação do prezado colega moedotecário Eder quando lhe declarei qual conto escolhera para a nova remessa. “Oh, Esse conto é massa, man”.

Uma viúva senta-se ao lado de um soldado numa cabine de trem e, ao longo da viagem, enquanto o infante Tomagra hesita entre investidas contra a matrona, ele não se esquece da condição ambígua que seu uniforme lhe confere. O que há de melhor é a forma como o conto é conduzido, um estilo calmo cria tensões que envolvem principalmente aspectos psicológicos do soldado nas suas tentativas de sedução da matrona impassível. Ademais, está claro que as duas narrativas reunidas no capítulo final Vidas Difíceis, mais longas e mais complexas, são também mais bem acabadas. O que não tira os méritos da prosa serena e técnica das aventuras anteriores.

Dentro da obra de Calvino, talvez não esteja equivocado aquele que se restrinja deliberadamente à sua face mais conhecida das inovações narrativas e das habilidosas fábulas; não resta dúvida que seja esta sua maior contribuição. Mas este outro ramo, herdeiro do séc. XIX – não seria aleatório no nosso caso em particular citar Maupassant e Tchekhov – fornece material suplementar que dialoga e enriquece o fabulador. Ademais, em um caso ou em outro, mesmo em muitos dos contos, se preferirem, pode-se experimentar aquela leitura que permanece presente até quando se está distanciado temporalmente do momento da leitura em si.

3) OS EX-HOMENS, Maksim Górki
por Daniel Oliveira

Górki que me desculpe, mas assim que eu terminei de ler Os Ex-homens* comecei a compará-lo, em não poucos aspectos, ao romance Capitães de Areia, de Jorge Amado. As semelhanças são gritantes: no conto do escritor russo, um bando de vagabundos miseráveis vive à toa, numa pequena e sórdida região, mais especificamente numa hospedaria alugada. Sobrevivem de pequenos furtos planejados e querem distância da polícia e demais autoridades; os cidadãos das redondezas, inclusive, os conhecem - são todos uns bandidos.

Algo familiar? Sem pressa, pois há os personagens: Aristides Fomitch Cuvalda é um capitão - sim, um capitão - administrador do albergue e “chefe” de todos os ordinários - não é necessário descrever seu temperamento. Seu braço direito é o Professor - não estou brincando! -, um dos poucos que sabe ler e o mais sábio e sensato da turma. Para completar, vários dos integrantes da equipe intitulada os “ex-homens” são conhecidos por apelidos: temos o “Bola”, o “Fim”, o “Desperdício” e o “Meteoro”; nem um religioso falta: é o diácono Tarass. Resta saber se Jorge Amado, que escreveu Capitães de Areia no ano de 1937, leu este conto de Górki, publicado originalmente no iniciozinho do século XX. Não me parece improvável essa leitura, se considerarmos que Górki não é nem um pouco desconhecido entre nós brasileiros.

Ao contrário do romance do escritor baiano, Os Ex-homens não possui trama alguma: como escreveu Carlos Heitor Cony, são “vagabundos, bossiaks autênticos, lançados num albergue noturno, à espera do nada e vivendo do nada. Falam muito, discutem muito (...), e, quando podem, comem e dormem. E morrem.” Górki traça um painel desolador da podridão russa, mas não busca uma reviravolta específica: seus personagens, seus “degenerados” pouco se importam com os acontecimentos, com o desespero ou com a própria morte; só querem existir e esquecer que são homens - daí o nome do grupo.

Górki, além de abraçar a causa comunista, era realmente muito feio, mas escreveu uma história que, nas palavras de Carlos H. Cony, é “um dos pontos altos de toda a obra gorkiana”, e, mais ainda, “uma das grandes realizações de toda a literatura universal”. Sua tenebrosa aparência física não o impediu de figurar ao lado (e, na maioria dos casos, acima) dos grandes escritores em língua russa do século XX como Kúprin, Bábel, Búnin e Andreiev.

* o conto Os Ex-homens acabou dando origem a uma peça teatral homônima que proporcionou relativa fama a seu autor.

terça-feira, julho 15

Seção UM CONTO! - nº 3

3ª Seção UM CONTO!

15/07/2008


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1) A MORTE DE IVAN ILITCH, Liév Tolstói
por Daniel Oliveira

Na última seção do Um Conto!, eu havia afirmado que “se Tolstói tem o seu A Morte de Ivan Ilitch e Tchekhov tem Enfermaria nº6, Púchkin é o autor de A Dama de Espadas”. Pois então: dos três, o que mais gosto é o de Tchekhov; não tenho condições de julgar qual deles seria o melhor - mas o mais famoso sem sombra de dúvida é A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói.

Reler A Morte de Ivan Ilitch é como ouvir Chega de Saudade no arranjo e na voz de João Gilberto. Toda vez que o fizer, você sempre chegará à mesmíssima conclusão: “eu tinha esquecido de que essa joça era tão boa assim”. Tolstói provavelmente é o maior escritor russo de todos os tempos - uma espécie de Wagner da literatura. Sempre pensou grande: seus romances eram verdadeiros calhamaços e seus contos são maiores do que muitas novelas; chegou ao ponto de fundar uma ideologia - o tolstoísmo - e no fim da vida buscou uma espécie de nirvana. Até a barba dele era enorme (vide foto acima) - não admira que sua literatura tocasse em temas universais, grandiloqüentes e, acima de tudo, moralmente eternos. Esta última particularidade, comum em praticamente toda a literatura russa, é para mim o seu aspecto mais fascinante.

O conto é ambientado nos momentos derradeiros da vida supostamente bem-vivida do alto funcionário Ivan Ilitch. Nos primeiros capítulos, seus amigos e colegas de trabalho tomam conhecimento do falecimento e, na perspectiva de um deles - Piotr Ivánovitch -, o autor descreve a quase indiferença dos presentes no velório para com o morto. Em seguida, o narrador volta ao passado e conta de forma sintética a vida do juiz, por fim enfatizando seus momentos finais. À medida que as páginas são lidas, o coração do leitor se compadece cada vez mais; à medida em que Ivan Ilitch vai percebendo o quão infeliz foi, nós, leitores, vamos admirando a prosa de Tolstói, suas palavras e suas metáforas, além de seu tratamento nem um pouco clemente do delicado tema. Ao final, estamos completamente domados pelo célebre escritor. O que vou contar agora não é mentira: após o término da minha leitura, fui assistir ao telejornal BA-TV, e inconscientemente fiquei esperando que a repórter desse a notícia do falecimento de algum singular cidadão russo.

Leitura altamente recomendável, A Morte de Ivan Ilitch é, para Otto Maria Carpeaux, “uma das obras mais comoventes e mais pungentes da literatura universal, talvez a obra-prima de Tolstói."


2) A PREOCUPAÇÃO DE UM PAI DE FAMÍLIA, Franz Kafka
por Davi Lara

O colega moedotecário, Rodrigo, veio se queixar certa vez de uma pessoa (ou das pessoas, não sei) que pergunta (ou perguntam) por que um livro é bom. "É bom porque é bom." Afirmação que em primeira análise pode parecer estranha, superior - até mesmo arrogante. Mas refletindo sobre, pareceu-me bastante lúcida essa posição. Explico-me: é claro que há críticos e críticos, cabendo aos leitores selecioná-los, o que não pode haver são fórmulas para a crítica literária, como não deve-se exigir a formulação racional para tudo; quando não tem o que se explicar, abstenha-se de explicações. Vejam, por exemplo, Kafka.

O tcheco é um dos escritores mais celebrados mundo afora, e com razão. O pioneirismo de sua obra faz dele um visionário. O que falar, então, do material literário? Creio que nenhum dos moedotecários, para tomarmos um exemplo familiar, negariam-lhe cinco moedinhas numa hipotética resenha. Eu teria que acrescentar mais uma moeda, no mínimo. Portanto, as leituras críticas de Kafka, inúmeras, que se vão acumulando ao longo do século não poderiam ser mais divergentes entre si; e inconclusivas - reconheço que é um exemplo extremo.

O motivo da escolha de A preocupação de um pai de família, de Um Médico Rural, não é outra senão a impenetrabilidade. Toda a obra de Kafka possui em maior ou menor grau um mistério, mas este conto parece ter o drama do não entendimento como tema. Vejamos a descrição de Kafka, tradução de Modesto Carone (abre parêntese para uma homenagem ao tradutor), do insólito Odradek:

"À primeira vista ele tem o aspecto de um carretel de linha achatado e em forma de estrela, e com efeito parece também revestido de fios; de qualquer modo devem ser só pedaços de linha arrebentados, velhos, atados uns aos outros, além de emaranhados e de tipo e cor os mais diversos. Não é contudo apenas um carretel, pois do centro da estrela sai uma varetinha e nela se encaixa depois uma outra, em ângulo reto. Com a ajuda desta última vareta de um lado e de um dos raios da estrela do outro, o conjunto é capaz de permanecer em pé como se estivesse sobre duas pernas."

Talvez seja um problema meu, mas sinto uma enorme dificuldade em conceber tal objeto. Cada vez que leio sua descrição, paro, leio novamente, e é como se o visse pela primeira vez. Vem e se perde. É essa a minha relação com Kafka. Assim como o pai de família preocupa-se com a finalidade de OdradeK, enquanto este deverá sobreviver a ele, Kafka permanece indecifrado, ou desvendado por vários ângulos diferente e que se excluem - o que dá no mesmo -, enquanto há empenho em demasia para moldar-lhe uma face definitiva. Talvez seja atributo da literatura o quê de inexplicável, necessário o juízo intuitivo, e não devamos limitá-la a explicações. Desconfio; talvez.


3) REFRESCO DE MANGA, Luiz Pimentel
por Eder Fernandes
Infelizmente não encontramos nenhuma foto de Luiz Pimentel. A foto acima é de Emerson.

No prefácio de Doze Contos Peregrinos, Garcia Marquez confessa: “o esforço de escrever um conto curto é tão intenso como o de começar um romance”. Confissão tão óbvia serve como advertência àqueles que pensam o conto como um gênero menor. Acreditem vocês: são muitos os que pensam assim. E isto se acentua no caso do contista se voltar a acontecimentos de uma parcela da população cujas aspirações metafísicas sucumbem à ordem da sobrevivência. Piora se esta obra não for, ao menos, panfletária. Chamam-no de rasteiro, gratuito, covarde.

Em meio a esses equívocos, Luiz Pimentel faz sua literatura. Não me recordo de um conto seu que falasse de um tema profundo da condição humana; ou por outra, não me recordo de uma narrativa sua que não tenha falado de tais temas, no entanto com uma linguagem fresca, rápida, despretensiosa que costuma enganar os leitores graves, aqueles que têm vasto apreço pela alegoria e desprezam os fatos cotidianos.

O conto em questão, Refresco de Manga, ilustra bem o que eu estou querendo dizer. Em um resumo grosseiro, a história trata da visita de um jovem ao antro onde sua irmã mais velha trabalha. Um bordel. Ela virou prostituta depois que brigou com a mãe e saiu de casa. O tema central, como muitos possam achar, não é o resgate da honra da família, o jovem não vai a busca da irmã para arrancá-la de lá. Não. São as relações fraternais travadas entre o narrador-personagem e sua irmã (é aí que o título faz tanto sentido) e a inocência dele a despeito daquele universo repugnante que fazem do conto uma peça literária. O autor subverte o óbvio de forma cálida, abrandada.

Falemos a verdade. Luiz Pimentel não é um contista excepcional, já que para isso temos os nossos gênios. Contudo é um autor que, à sua maneira, vem fazendo uma literatura eficaz e ascendente. Não diria se tratar de alguém que precisa ser lido, mas também não diria que precisa ser ignorado. A sugestão está feita.


4) HARÉM, Elieser Cesar
por Rodrigo L.
Também não encontramos foto alguma de Elieser. Quem aparece aí encima é Dylan Thomas.

Nascido em Euclides da Cunha, no sertão baiano, Elieser Cesar tem seus quarenta e tantos anos e uma saudável cota de bom humor. Nos correntes dias, em que o artista baiano ou brasileiro exulta de uma seriedade e de um tom denunciador que - para quem está de fora - são só patéticos, Elieser escreve Harém. Não há, neste conto mínimo, de duas páginas apenas, uma grande lição a ser imposta ao leitor. O autor não pretende, com seu texto, radiografar a alma moribunda de sua terra - sem utilização meramente estética e vazia da violência, da apatia ou da miséria, Elieser promove um simples e bem humorado exercício estilístico.

Não se trata, contudo, de um conto perdido; não se desenvolve do nada para no nada findar-se. O sonho erótico do jovem estudante - que se imagina venturoso dono de um harém e de uma virilidade incansável - apresenta uma relativa quantidade de referências reais e palpáveis. Entre elas, a feminilidade reprimida da mulher afegã: "A excitada muçulmana balia um pequeno gemido de cabrita saciada". Elieser, ademais, encontra uma louvável forma de superar o delírio e recobrar a realidade: após as sombrias descrições das escravas sexuais tornando-se bruxas horrendas, consegue ainda assim preservar o riso do leitor.

Método semelhante pode ser encontrado em outros contos do autor (tais como Akizar, Tesoura de Ouro e o longo e belo O Trono do Desenganado) e, embora sua escrita, por vezes, debata-se diante dos mesmos problemas que, nos primeiros parágrafos, apontei como distantes de Harém (sobretudo nos contos A Garota do Outdoor e O Primeiro Carnaval de Luciano), a faceta mais descompromissada com uma suposta mensagem e mais preocupada com o trabalho estético faz Elieser sobressair-se na atual literatura baiana e brasileira como uma saudável exceção.

domingo, junho 22

Seção TOP 5 - nº 3

TOP 5
Nº 3


5 FILMES PREDILETOS

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EDER FERNANDES


1 - TOURO INDOMÁVEL(Raging Bull, EUA)
Só Deus sabe o quanto este filme me comove.

2 - APOCALYPSE NOW (Apocalypse Now, EUA)
O vi, salvo engano, cinco ou seis vezes. Pouco ainda.

3 - OITO E MEIO (8 ½, Itália)
Tipo de filme que é muito bom para não constar em minha lista.

4 - BLOWUP - DEPOIS DAQUELE BEIJO (Blowup, ITÁLIA/UK)
Um filme pedagógico. Bem ao estilo "para entender o cinema".

5 - TAXI DRIVER(Taxi Driver, EUA)

Assim como Raging Bull, sei algumas falas de cor. Assim como Raging Bull, o vi algumas dezenas de vezes. Obra inesgotável.

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DANIEL OLIVEIRA

1 - 2001: UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO (2001: A Space Odissey, EUA)
Foram precisos 1968 anos da era cristã para se realizar esta obra. Provavelmente a criação de algo à altura só será pensável a partir do ano de 3936. Não estou reclamando.

2 - RASTROS DE ÓDIO (The Searchers, EUA)
Quando os sociólogos e antropólogos vierem lhe dizer que gênios não existem, você tem duas opções: ou você os faz escutar a 9ª de Beethoven, ou lhes mostra Rastros de Ódio, de John Ford.

3 - O PIANO(The Piano, AUSTRÁLIA/EUA)

Jô Soares, um cinqüentão, afirma ter assistido Cidadão Kane mais de 30 vezes. Sou bem mais jovem que Jô e só assisti a O Piano umas 13 vezes – pretendo chegar aos 100. A 1ª vez foi num longínquo trabalho de escola. A 2ª, vista numa fase menos apalermada, foi para alimentar a fome cinéfila. As outras 11 foram por causa de Holly Hunter. E as próximas 87 também serão.

4 - O HOMEM QUE COPIAVA (BRASIL)

O primeiro filme que eu admirei passionalmente de fato.

5 - A NOITE (La Notte, ITÁLIA)

Minha primeira grande experiência intelectualóide do audiovisual.


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DAVI LARA

1 - CONDENAÇÃO (Kárhozat, HUNGRIA)

A cena inicial sintetiza muito do que vem depois e é a minha cena predileta do cinema; a lassidão, a fumaça do cigarro, o preto em branco. Muito mais que o argumento propriamente dito, o distinto em Condenação é a sua atmosfera, opressora, daninha. O filme atinge o ápice nas cenas mais misteriosas como o confronto do homem com o cão ou o sapateador solitário e inadequado. Não sei dizer exatamente porque o primeiro lugar, mas nunca titubeei.

2 - AMOR À FLOR DA PELE (Fa yeung nin wa, HONG KONG)

Lembro-me da cena na qual os cabelos da moça voam enquanto corre uma escada acima com uma tigela de macarrão. Lembro-me do vapor que as panelas que cozinham o macarrão libaram quando destampadas. Lembro-me da estampa do papel de parede da casa da moça. Lembro-me também do ambiente monótono do apartamento vizinho. Lembro-me de inúmeros detalhes, de inúmeras sensações. O que me escapa à memória não desabilita uma das mais intensas experiências cinematográficas que tive. Ao contrário: ressalta sua importância.

3 - GRITOS E SUSSURROS (Viskningar och Rop, SUÉCIA)

Algum filme de Bergman teria que entrar em meu TOP 5. De acordo com minha preferência pela concisão e pela poesia, Gritos e Sussurros é a escolha inevitável.

4 - KRAMER VS KRAMER(Kramer Vs Kramer, EUA)

Este filme não entraria nesta lista se eu não o tivesse re-assistido por acaso há poucos dias. As atuações são impressionantes (destaque para Dustin Hoffman e Meryl Streep) e toda a delicadeza com que aborda o tema faz-nos penetrar no mundo alheio. Poucos filmes conseguiram grau tão elevado de sinceridade. Mesmo consciente da sua singeleza, é difícil ficar aparte. Talvez esta mesma simplicidade seja uma das características principais.

5 - 2001: UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO (2001: A Space Odissey, EUA)

Todos que conhecem minhas preferências se espantarão com falta de Kurosawa ou de Lynch neste TOP 5. Assim como o envolvimento parcial com o quarto lugar foi preponderante, uma avaliação refletida não me deixa escolha quanto à quinta colocação. Impossível negligenciar a perfeição atingida por 2001.


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RODRIGO L.

1 - O PODEROSO CHEFÃO (The Godfather, EUA)

Coppola faz da máfia uma arte. Há qualquer coisa de Grécia, de Roma nas intrigas e reviravoltas dos Corleone - momento raro em que me permito a apreciação do pendor para o Gigante em películas. Talvez a continuação, de fato, seja superior (por ser mais ampla) - mas está nesta primeira fita todo um impacto que jamais poderá se repetir.

2 - OS INCOMPREENDIDOS (Les 400 Coups, FRANÇA)

Jules et Jim melhora a cada sessão que me imponho, mas, ainda que repetido infinitas vezes, jamais alcançará o nível de Os Incompreendidos - sei, apenas, que Doinel é o maior sofredor do cinema: ao fim da película, nem eu, que me compadeço de sua situação, consigo compreender o seu olhar perdido.

3 - TAXI DRIVER (Taxi Driver, EUA)

Um filme em que toda cena é pensada para ser clássica e, mais do que isso, perturbadora. A sordidez de NY e de Travis Bickler se encontram e travam duelos aos quais ninguém passa imune.

4 - A NOITE (La Notte, ITÁLIA)

O máximo de sobriedade na câmera. O máximo de inteligência e concisão nos diálogos. Como não bastasse, atua um trio do qual Antonioni consegue tirar também o máximo: Mastroianni, Moreau e Vitti encenam a mais contundente e elegante crise de relacionamento do cinema.

5 - OITO E MEIO (8 1/2, ITÁLIA)

Sobre a sua memória, Guido confronta, cheio de dor e ironia, a eterna e incontornável questão: até que ponto vida e obra convivem harmoniosamente? Fellini produz, com a maestria que lhe é típica, a mais bem acabada representação cinematográfica do artista - falhado, egocêntrico, vaidoso e compassivo, Guido sai das telas direto para as antologias.

domingo, junho 15

Seção UM CONTO! - nº 2

2ª Seção UM CONTO!

15/06/2008


***


1) YVETTE, Guy de Maupassant
por Davi Lara

Falar de contos e não falar de Maupassant é imperdoável. Todo manual literário que se debruce sobre as potencialidades da narrativa curta parece descrever a obra de Maupassant - talvez o façam. É um dos escritores exemplares, um dos gigantes que sombreiam tudo que se aproxime. Não me lembro quando ele se tornou o meu predileto; creio que quando nasci. Tanta propensão me advertiu, tentei não gostar dele - obviamente, falhei.

Descrever o estilo de Maupassant é discorrer sobre a concisão. É um trabalho obsessivo onde busca-se manter somente o necessário. É um trabalho intelectual, pois é preciso uma compreensão parcial da história para saber o que é gratuito, eleger o que é imprescindível. As escolhas de Maupassant são marcadas pela aspereza com que trata suas letras e as suas personagens. Com inclinação para as pessoas ordinárias e marginais, as vítimas das circunstâncias, que não têm para contar nem a si próprias. Mas é o caráter excepcional de Yvette que o faz se destacar entre tantas narrativas curtas monumentais.

A começar pela sua extensão, bastante longo, Yvette é mais adequadamente classificado como um conto-novela (pode-se observar que, mesmo com muitas páginas, a concisão de seu estilo, de aproveitar tudo o que esta escrito, em suas novelas, as aproximam do conto). A perspectiva do olhar sobre a vida mundana é um ponto de distinção, dos mais importantes. O sub-mundo das prostitutas e jogadores, ao se opor à mediocridade, é enaltecido como uma opção legítima. Mas sem incidir numa visão fantasiosa, ao contrário, não falta a ironia.

Mas o que se distingue, é Yvette, a personagem título, filha de uma cortesã e, em muitos aspectos, sua oposição. A mãe ostenta uma cabeleira negra, olhos sugestivos e um buço discreto sobre os lábios; ela, loura, jovem e virgem. É bonito ver como Maupassant estrutura essa personagem. Dividido em quatro partes, somente na terceira parte é explicitada a personalidade de Yvette, anteriormente apenas sugerida. Uma quase tragédia, Yvette é uma história sobre a inocência. Maupassant, que nunca absolve a suas criaturas, nos dá a oportunidade de o ver relativizar a corrupção e, por conseguinte, acreditar na inocência.




2) A DAMA DE ESPADAS, Aleksandr Púchkin
por Daniel Oliveira


Se Tolstói tem o seu A Morte de Ivan Ilitch e Tchekhov tem Enfermaria nº6, Aleksandr Púchkin é o autor de A Dama de Espadas, o conto-novela em questão. Para compreender a importância deste gênio russo, só mesmo comparando-o a um Poe, um Dante ou um Shakespeare; Púchkin foi o pai da literatura russa moderna, e, escrevendo romances, contos, poesia e poemas épicos, influenciou todas as gerações posteriores, dando origens a mestres como Tolstói, Turguêniev ou Maiakóvski. Fica até difícil decidir em qual área sua habilidade beira à perfeição: se na prosa ou no verso.

Segundo Boris Schnaiderman (um exímio tradutor, diga-se de passagem), A Dama de Espadas “lembra muito os contos de E.T.A. Hoffman”; com efeito, de acordo com as minhas leituras de apenas 3 contos do escritor alemão, devo concordar com essa afirmação: o tom sinistro só é desmembrado no meio do conto; mas, a partir daí, não o abandona mais. Os dois contistas, no entanto, se tornam discrepantes quando percebemos a textura cômica de Púchkin: neste conto não é difícil notar a pena ferina do autor, mesmo que aí contenha, ainda segundo Schnaiderman, “rasgos e inspirações para o tema central de Crime e Castigo”.

Ao ler Púchkin e Tchekhov traduzidos pela mesma pessoa, acabei lendo 3 livros. De fato, quem procura descobrir as influências de Púchkin em Tchekhov facilmente as encontrará; se a tradução poética já é quase intolerável, a tradução de prosa acaba gerando um sub-estilo oriundo de um “autor fantasma” que escreveu sobre o manuscrito original. A grande diferença entre os dois é a já conhecida maestria do segundo em levar ao ápice o poder de sugestão. Além disso, devo dizer que, geralmente, enquanto as implicações cômicas de Púchkin partem de idéias, as de Tchekhov, quando existem, provém dos fatos em si.

O enredo de A Dama de Espadas é o seguinte: um sujeito, após ouvir a história sobre uma senhora que sempre advinha as cartas no jogo, resolve ir atrás desta para ver se a afortunada lhe revela o segredo. Não direi mais nada: só pela primeira frase desse post já vale a leitura. O máximo que posso fazer é mais uma vez deixar registrada aqui a minha profunda admiração por Boris Schnaiderman, este honorável brasileiro.


3) CANTOS, Antonio di Benedetto
por Rodrigo L.

Benedetto é o que está de braços cruzados.


Antonio di Benedetto me parece ser a mais nova descoberta e aposta do mercado editorial brasileiro. Novos romances e coletâneas de contos seus surgem nas livrarias a cada mês. Considero uma atitude justa: a produção do autor argentino é digna das mais altas prateleiras da literatura hispano-americana. Cantos, presente nos seus Cuentos del Exilio (inédito no Brasil), representa bem a sua arte: o estilo peculiar, difícil de ser enquadrado nos termos correntes da literatura argentina, é quase cinematográfico (veloz, altamente descritivo e de aparente simplicidade) e o tema (concentrado na impossibilidade de realização e na amargura que disso se alimenta) são paradigmas presentes em quase toda a sua produção.

Trato de ilustrar: leiam Cantos e lá perceberão, de imediato, a concisão da frase inicial - que descreve um amor ingrato que não prosperou - e a forma abrupta com que, já no segundo parágrafo, os amantes arrependidos se reencontram. Mais oito curtos parágrafos e todo o passado deles é discutido, rememorado por meio de sentenças igualmente curtas e, enfim, a mulher tem seu corpo destroçado por um ônibus.

O seu pendor e a sua perícia para a construção e a descrição de imagens surge na seqüência, ao descrever o rosto "bastardo" com que a jovem senhora ficara após o acidente - irreconhecível, "já não era ela". Ao final, ao confessar que ainda a busca, assinala a condição desditosa de todo ex-amante: arrepender-se, procurar pela imagem que tinha do velho amor e que, a partir do momento em que se dá a separação, morre – atropelada por um ônibus ou apenas afastando-se irremediavelmente pelas calçadas.

Clique aqui para ler o conto.



4) DISSOLUÇÃO, Mayrant Gallo
por Eder Fernandes

Em algum momento da conversa de ontem, quando eu e mais dois amigos estávamos trocando opiniões sobre alguns escritores baianos contemporâneos, o nome de Mayrant Gallo foi citado. "Mayrant é um bom professor, ele sabe fazer a coisa. Os cursos que ele ministrou aqui na UEFS foram muito bons. Um foi sobre o conto policial. Muito bom! Ele sabe mesmo como funciona o mecanismo do conto", disse um amigo. O outro, quase o interrompendo, indagou: "Mas por que é que ele não consegue levar esse conhecimento para os contos dele?" A resposta veio seca e inapelável: "Talento. Falta talento". Eu, que estivera calado, apenas reiterei a resposta com a cabeça. E sim, falta-lhe algum talento.

O conto Dissolução, do livro O Inédito de Kafka (2003), ilustra bem essa deficiência de Mayrant, a de não saber pôr em prática seu suposto conhecimento sobre narrativas curtas. Diz-se em todos manuais sobre o conto que este tem que começar muito bem, evitar floreios e digressões que prejudiquem sua agilidade. O conto é essencialmente ágil. Pois bem, não é o caso de seguir manuais, é óbvio, mas o bom começo é uma obrigação primária — qual é o conto de Poe que começa mal? Nesse ponto digo que Dissolução não começa bem. Divagações desnecessárias o prejudicam. Leiam e depois venham concordar comigo. Ele, Mayrant, poderia muito bem cortar os dois parágrafos iniciais.

É bom se dizer que, com um mau começo, ler a página seguinte é uma enorme besteira. Mas eu o fiz. Os erros de composição se atropelam, a ponto de alguns serem rasteiros, como aquele erro mais atribuído ao escritor iniciante, o de se confundir com o personagem que está narrando a estória. Exemplo. O personagem de Dissolução, pelo que se percebe, um burocrata (mal pago ou bem pago, isso não importa) anda pelas ruas de Salvador e pensa em Gregório de Matos, de como o poeta supostamente sentiu asco daquelas ruas. Vá lá que um burocrata mediano leia Gregório de Matos, e até goste dele a ponto de evocá-lo num momento grave de sua existência, como ocorre no conto. Isso, contudo, não é bem encaixado, e a citação soa muito mais como de Mayrant, o autor. Há outros elementos que aparecem e ficam soltos na narrativa. Como, por exemplo, “o espelho”. A todo momento o personagem se refere a um espelho que precisa ter, só que não há uma explicação coerente para isto. Não coerente no sentido óbvio, mas coerente com a estrutura, com o enredo do conto. Não há, e se há não ficou claro a mim, ao menos.

Como a idéia desta seção é primeiramente a da sugestão (sugerir um conto, um autor, uma idéia sobre um conto), não me compete analisar todos os aspectos de Dissolução, e nem, como alguém poderá dizer, fundamentar minhas críticas, porque elas são apenas frutos da minha experiência como leitor. Portanto, leiam Mayrant Gallo e concordem comigo ou não. Pois como bem disse meu amigo Rodrigo L., "gosto não se discute, se lastima".

domingo, maio 25

Seção TOP 5 - nº 2

TOP 5
Nº 2


5 ROMANCES PREDILETOS

***


RODRIGO L.



1 - O Vermelho e o Negro, Stendhal

Minha conclusão, terminada a leitura, foi a de que o romance jamais alcançaria níveis tão elevados outra vez - não digo níveis técnicos, estéticos ou literários. Refiro-me, isso sim, às impressões e sensações particulares que um romance poderia me proporcionar. A narrativa perfeita.

2 - No Caminho de Swann, Marcel Proust

Considerando que toda lista está condicionada ao momento em que é feita, não exagero ao afirmar que, daqui a um ano, essa estará bastante modificada - restando, apenas, No Caminho de Swann. O livro ao qual sempre retorno. Com pelo menos uma leitura anual, qualquer romance se torna um enigma e uma obsessão pessoal: Proust permanece indecifrável e incompreensível em suas qualidades.

3 - Quincas Borba,
Machado de Assis

A ironia é uma forma superior e amarga de inteligência. O fato deste romance ser melhor do que Dom Casmurro e Brás Cubas passa despercebido através de todo o século XX para que, finalmente, eu o revele aqui, agora.

4 - Grande Sertão: Veredas,
João Guimarães Rosa

A mais intrincada e prazerosa leitura que o romance brasileiro pode proporcionar. Valeria só pela sintaxe perturbada, pela linguagem torta - mas como superar o aspecto profundamente humano dos personagens que, arrependidos, só parecem sofrer e temer?

5 - Os Maias, Eça de Queirós

Há que se ter muitas leituras para que se encontre uma cena final comparável à caminhada e às confidências e reflexões de Ega e Carlos no desfecho do romance - e tipos tão marcantes quanto os que povoam o Ramalhete e toda Lisboa. Tão irônico quanto Machado, Eça, contudo, é apaziguado por uma melancolia serena, mas gigantesca: a derrota superando o país, abarcando o indivíduo.



DAVI LARA


1 - O Processo, Franz Kafka

Não há nada que se compare a Kafka. Obra inacabada, um pouco impenetrável, O Processo é espantoso. Durante um tempo, num lugar perdido da memória, literatura e Kafka se confundiam para mim. Sempre serviu de refúgio. Sempre me deixa perplexo.

2 - Pais e Filhos,
Ivan Turgueniev

Desconheço outro empreendimento literário que carregue tão merecidamente o fardo da perfeição.

3 - Lolita, Vladimir Nabokov

Segundo o censo do ano passado, já passa de um a soma de desafortunados que ingressaram (ou permaneceram) no curso de letras por má-influência do russo bilíngue. Compreendam, é impossível ficar alheio a Nabokov.

4 - O Lobo da Estepe,
Hermann Hesse

Sim, eu gosto de Hermann Hesse. Não me incomoda a fama Paulo Coelho que lhe atribuem. Parece-me óbvia a discrepância dessa comparação. Devem pensar do mesmo modo todos que já tenham lido o alemão. Existem mais diferenças além de saber escrever. Falo isso porque também a temática de Hesse me agrada. Sua literatura investiga o homem. O seu envolvimento com a cultura oriental vem para somar, dá-lhe um olhar amplo e, não raramente, velado, misterioso. Gosto desses atributos.

5 - Cidades Invisiveis, Italo Calvino

Minha relação com Cidades Invisíveis está repleta de acontecimentos que extrapolam os restritamente literários, por si só satisfatórios. Tem também um encantamento, uma transcendência.



DANIEL OLIVEIRA


1 - Em busca do tempo perdido - No caminho de Swann, Marcel Proust

Na página em que a personagem principal da Recherche descreve a terrível angústia que sente pelo fato de sua mãe não lhe poder dar boa-noite naquela noite, eu decidi que gostava mais de literatura do que música. Antes, achava até ignorância pensar assim. Obs: o livro primeiro representa aqui toda a obra, que é dividida em 7 volumes.

2 - O grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald

Fitzgerald, ao escrever a dramática história de Gatsby, não o fez pelo próprio personagem ou por um narrador onisciente, mas pelo olhar de um “simples” vizinho tão inexpressivo quanto impessoal. Eis um dos motivos da grandeza deste romance, e o principal pelo qual eu lhe dedico fervorosa admiração.

3 - O Processo, Franz Kafka

Kafka é provavelmente o autor mais imortal de todos os tempos. Não há ser humano, instituição, país ou época que não lhe abaixe a cabeça e confesse a mais despudorada fascinação pela sua obra – e eu não fujo à regra.

4 - Fome,
Knut Hamsun

Fome, do escritor norueguês, é o meu xodó literário. O alter-ego de Hamsun é o meu predileto (sim! incrível! não é o de Proust!)

5 - O retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde

Meus colegas moedotecários certamente não porão esta singular obra no presente TOP 5, mas eu não a abandonei: para a grande maioria dos amantes de literatura da minha geração - e falo por estatística - tudo começou aqui.



EDER FERNANDES


1 - Os Maias, Eça de Queirós

Não me lembro na época de ter achado-o genial. Talvez, leitor imaturo, não me tenha debruçado mais fervorosamente diante do livro. Não importa. Durante os anos os personagens de Os Maias ainda ecoam em minha cabeça. Preciso relê-lo.

2 - Livro das Mil e uma Noites, Autor desconhecido

Se é ou não um romance, pouco importa. O fato é que a narração é forte e comove qualquer leitor. Não há que não sonhe e se delicie com as comidas, as mulheres bonitas e os lugares ditados pelo livro.

3 - Dom Casmurro,
Machado de Assis

Que Memórias Póstumas seja o seu melhor livro. Dom Casmurro, no entanto, é o meu predileto do Bruxo do Cosme Velho. Depois de Capitu toda personagem feminina é como uma nota de rodapé: só a reitera.

4 - No Caminho de Swann,
Marcel Proust

Ainda não li todos os volumes de Em Busca do Tempo Perdido. Mas não faz mal. O primeiro parágrafo deste livro é simplesmente o melhor primeiro parágrafo da literatura ocidental.

5 - São Bernardo, Graciliano Ramos

Seria Angústia, que é visivelmente melhor que São Bernardo, só que Paulo Honório é o melhor personagem de Graciliano que eu já li. Em vista disso, não posso escolher senão São Bernardo.

terça-feira, abril 15

Seção UM CONTO! - nº 1

1ª Seção UM CONTO!

15/04/2008


***


1) AVENTURA BÚLGARA, Kosztolányi Dezsö
por Rodrigo L.

s ő nyalni kezdi ezt az égi mézet..



Li exatos cinco contos de Kosztolányi Dezsö. Os cinco relatos necessários para que o autor se tornasse um dos meus cinco contistas favoritos. É provável que alguns leitores desconheçam o referido gênio - algo absolutamente compreensível se considerarmos a escassez de material literário húngaro nesta parte do mundo que nos coube - e por isso façamos as devidas apresentações: nasceu em 1885 e morreu em 1938. Aí pelo meio, escreveu poemas, romances, ensaios e contos. Diz-se que a contística é a parte menos valorizada de sua obra - fato que me deixa estupefato e sedento de conhecer sua poesia intraduzível.

Aventura Búlgara, vertido para o português por Paulo Rónai, é prova clara de uma grandeza solenemente ignorada, sepultada numa língua obscura de um país obscuro - língua e país fetiches de quem quer que tenha cruzado a Antologia do Conto Húngaro ou as páginas de Molnar ou Kaffka Margit. Narra, basicamente, a história de um viajante húngaro que, ao cruzar a Bulgária, decide entabular uma conversação (que atravessará a madrugada, cheia de reviravoltas, risos, lágrimas, confissões, brigas e reconciliações) com um nativo. O detalhe que tira o conto da obviedade é que o tal magiar não compreende mais do que quatro ou cinco palavras do idioma estrangeiro – o que não o impede até mesmo de ler uma carta no indecifrável alfabeto cirílico. O debate nutre-se, basicamente, de expressões corporais várias e sentenças como "Sim", "Não" e "É a vida" ("... uma frase que se adapta a todas as situações. Na vida não apareceu nunca nenhuma situação que não admitisse essa fórmula - É a vida - empregada mesmo quando alguém morre.").

O texto não carece de humor, de estilo, de concisão ou de qualquer outra característica que encontramos nos contos de Poe, Tchekhov ou Machado. Trata-se, claramente, da escritura de um grande artista, de um mestre do conto universal - do qual, vejam só, eu só li cinco contos.



2) O RABO DA SEREIA, Ildázio Tavares
por Eder Fernandes

A foto acima é do Maiakóvski. Não conseguimos encontrar nenhuma de Ildázio.


Desde o primeiro parágrafo do conto O Rabo da Sereia, de Ildázio Tavares*, as características da narração e o enredo já ficam muito claros: há um narrador confuso recordando uma paixão que o arrebatou certa vez e que até hoje deixou marcas – tanto que o fez “contar” a história.

Para fazer do personagem-narrador um sujeito confuso e passional, Ildázio se valeu muito bem de alguns recursos estilísticos. Primeiro, a narração bem calcada na memória; somando-se a isso uma característica do personagem-narrador: sua memória não é nada cronológica e sim, como mais adiante deixará escapar, inteiramente subjetiva. “É tudo muito difícil. Difícil até de contar. Sim porque certas pessoas têm uma memória minuciosa, guardam tudo muito bem guardado (...) E no meu caso não há nada que se aproxime da lógica”. Segundo recurso: a opção em usar vírgulas quando há mais fluxo de consciência do que simples relatos; bem como a utilização do ponto de segmento nos trechos onde a narração necessita de lucidez e cadência. Essa possibilidade de alternar o ritmo do texto por via dos pontos e das vírgulas, além de ressaltar a confusão do narrador – porque essa alternância passa às vezes uma idéia de incoerência --, ilustra o desassossego de um homem apaixonado: “Paixão não é brinquedo”.

A mulher por quem o personagem-narrador está apaixonado é na verdade uma menina de “13 ou 15 anos”. Ele tem 40. Homens mais velhos que se apaixonam perdidamente por meninas ainda em flor já se tornaram um tema célebre na literatura. O romance Lolita, de Nabokov, é talvez o ponto mais alto. Há poucas semelhanças entre a Dolores Haze de Nabokov e a Elena de Ildázio. No entanto, certas semelhanças possam vir da personalidade atribuída a meninas dessa faixa etária: impulsivas, intransigentes etc, etc. Enfim, Elena ainda é mais pueril do que a personagem nabokoviana, nitidamente sensual.

Como foi esboçado nos parágrafos acima, o enredo de O Rabo da Sereia é: um homem relembrando as vicissitudes de uma paixão avassaladora por uma adolescente, relatando os fatos em uma seqüência pouco nítida, não obstante - se debruçarmos mais atentamente sobre o texto - com um começo, um meio e um fim.

O final, aliás, é o grande momento do conto. Quando, notando um ligeiro desinteresse de Elena por ele, o personagem-narrador resolve não procurá-la mais. Depois se questionando se teria feito o mais correto, conclui que “não é preferível instalar a dúvida numa certeza total”. A “certeza total” seria o amor que Elena sentia por ele, a “dúvida” naturalmente seria o ciúme. Sentimento esse tão caro a todos personagens da literatura que viveram o mesmo drama de se apaixonar por uma menina bem mais nova. Ildázio, inteligente, não se furtou de atribuir esse sentimento a seu personagem.

* Ildázio Tavares: escritor baiano. O conto foi lido na Antologia Panorâmica do Conto Baiano do Século XX.



3) ANGÚSTIA, Anton P. Tchekhov
por Daniel Oliveira

Se me obrigassem a escolher um único conto que marcou definitivamente minha vida (tanto pessoal quanto literária), eu pediria mil desculpas a Machado, Maupassant e Bioy; porque eu escolheria Angústia, de Anton P. Tchekhov.

Uma breve confissão: eu já escrevi. Também já enveredei pelas trilhas da criação literária. Eu só escrevia contos, até ler Tchekhov. Agora não escrevo mais nada.

O conto é magistral. Independente e acessível, sua narrativa não necessita de uma releitura sobre outra perspectiva para a consumação plena. Devemos lembrar da tradução de Boris Schnaiderman, aquele que está para Tchekhov assim como Modesto Carone está para Kafka. Além da sublime contística do mestre russo, a história em si é pungente, e se perdoa muita coisa num texto por causa de sua comoção. Elogia-se até mesmo livros como O caçador de pipas, romance literariamente medíocre cuja história contém poderosa carga emotiva.

Eu poderia lembrar que Tchekhov reinventou o papel do narrador, a entrelinha, o dito e o não-dito; mas o conto Angústia não é apenas importante: ele é genial e acima de tudo atemporal. Publique-o em qualquer época de qualquer cultura e o efeito será o mesmo. Um bom número de valores universais se encontra aí, tudo em menos de dez páginas, o que é assombroso. Aleksandr Tchekhov, irmão do autor, lhe escreveu uma carta a respeito do trecho final do conto: “Eu naturalmente estou exagerando, mas nesta passagem você é imortal”. Na primeira lida, pensamos que o irmão de Tchekhov realmente exagerou um pouquinho. Na segunda, passamos a achar que não. E na terceira percebemos que o tal do Aleksandr foi modesto até demais.

Há contos e contos. Há autores e autores. E há Tchekhov. Todo mundo sabe disso. Qualquer pessoa de bom senso consegue perceber.



4) TLÖN, UQBAR, ORBIS TERTIUS, Jorge Luis Borges
por Davi Lara

Acabei de reler o conto de entrada de Ficções em uma edição da Globo com um ensaio crítico introdutório. Pulei a introdução, me reti no prólogo do autor, e assim como me lembrava, também desta vez, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius me pareceu impecável. Não vou listar aqui as qualidades do conto, mas antes me fixar na sua faceta que mais me encanta.

A literatura fantástica se constitui, a grosso modo, a partir da negação da realidade. No Realismo Fantástico (gênero literário que tem, a meu ver, no conto em questão a sua representação mais completa) sua construção se faz na criação de um mundo de regras bem definidas que forma-se uma realidade paralela à Realidade dos homens de carne e osso. Uma característica de Borges é a reflexão sobre a literatura; sobretudo a sua literatura. Isso se dá tanto nos ensaios, e menos nos prólogos (sempre lúcidos, mas curtos) aos seus próprios livros, quanto nos seus contos.

Desconheço qualquer trabalho acerca da obra de J.L.B. com exceção de um ensaio que li esperando um amigo na biblioteca para passar o tempo e do qual pouca coisa lembro. Por essa ignorância me arrisco, com grande probabilidade, a repetir o que já foi dito. Porém, acredito valer a pena dividir minha opinião, que se não nova, assim quero crer, é legítima.

Neste conto somos guiados por um labirinto (estrutura cara ao autor) onde o penetrar da fantasia na realidade, e vice versa, nos chega a um final onde a realidade convive com elementos anteriormente exclusivos da imaginação. Por meio de Bioy Casares (amigo de J.L.B. no mundo real e escritor) e de um acaso ( a "...conjunção de um espelho e de uma enciclopédia...") Borges descobre um país inventado: Uqbar. A partir de Uqbar, uma curiosidade fixa e mais acasos, descobre um mundo: Tlön, onde o conto se detém em sua descrição por um longo tempo conforme a XI edição da enciclopédia Orbis Tertius – o próprio planeta Tlön é criação da literatura de Uqbar que, negligenciando a realidade, se referia “... às duas regiões imaginarias de Mlejnas e de Tlön...”. Aumenta-se a complexidade do labirinto tomando-se em conta que Tlön, por si só, tem uma literatura esmiuçada no texto.

Ao final do conto Tlön não é mais uma abstração, mas uma realidade penetrando a outra, ameaçando tornar esta aquela. Excluindo-se as particularidades: partimos de um mundo criado, desse mundo cria-se outro mundo, que por sua vez se vinga, se tornando tão real quanto o primeiro mundo; daí temos, portanto, um novo ponto de partida. Um labirinto sem fim: se ampliarmos, por exemplo, essa dinâmica para o JLB real criando outro JLB e um ABC fictícios.

JLB que é na literatura a melhor representação da união entre o literato e o intelectual, utiliza-se dos seus contos para expor suas idéias muitas vezes já expostas em seus ensaios. Em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius JLB trata da questão do realismo fantástico, dentre outras coisas, e com uma consistência no plano das idéias tanta quanto no plano da criação literária. Uma conclusão redundante: um dos melhores contos já compostos.

domingo, abril 13

Seção TOP 5 - nº 1

TOP 5
Nº 1


5 ÁLBUNS PREDILETOS


***

DAVI LARA

1 - Bethânia canta Caetano, Maria Bethânia

A priori, uma coletânea não poderia constar nesta lista. Mas tendo em conta o repertório coeso (temática, estilo, cor, etc), uma refinada disposição das faixas e os arranjos espantosamente combinando entre si, essa premissa é dispensada. Ainda não houve álbum que tenha tido tanta repercussão (e que persiste) em mim, multiplicando-se em ecos nas paredes internas de meus estômagos e da minha caixa craniana. Não há momento em que eu não o escute.

2 - Tropicália, Caetano Veloso

Caetano é uma constante em meus assuntos e em minha leituras de mundo. Escuto Caetano desde criança e desde então adquiri o hábito (ou o hábito me adquiriu) de renovar o olhar sobre sua obra, fazer relarem-se outras facetas. Tropicália representa minha mais recente e feliz descoberta.

3 - Gil Luminoso, Gilberto Gil

A simples rúbrica de Gilberto Gil é motivo mais que suficiente para esse álbum estar nesta lista. Gil Luminoso é especial dentre tantos outros álbuns de Gil porque traz o foco dos arranjos e interpretações para as canções. Canções delicadas, contemplativas e com o vigor das obras impecáveis.

4 - Let it Be Naked, The Beatles

A minha descoberta dos Beatles (um marco e uma alegria pra mim) se deu por esse álbum. Mas dentre tantos outros mais bem acabados, se os próprios Beatles não ostentam especial orgulho pelo Let it Be, pra mim ele revela sem maquiagens e esplendidamente aquilo que mais sei gostar na música: boas canções.

5 - Acabou Chorare, Novos Baianos

Por ter conquistado minha confiança aos poucos, por representar uma cultura nacional e baiana e me dar algum modo de identificação com o lugar em que vivo. Enfim, porque eu gosto de Novos Baianos.



EDER FERNANDES

1 - Chega de Saudade, João Gilberto

Se João Gilberto é, para mim, o melhor intérprete que o planeta Terra já concebeu, e se a própria música Chega de Saudade é a minha predileta dentre todas já compostas, logo não seria surpresa nenhuma o disco encabeçar essa lista tão difícil.

2 - Abbey Road, The Beatles

Os melhores de todos os tempos fizeram em seu disco de despedida o que mais sabem fazer: emocionar gerações e gerações.

3 - Coisas, Moacir Santos

Fiquei horas indeciso entre três discos de jazz: Kind of Blue, do Miles; My Favorite Things, do Coltrane; ou Coisas, do Moacir. Escolhi Moacir por um simples motivo: não sei.

4 - Blood on the Tracks, Bob Dylan

O disco mais amargo da música popular. Sendo eu um sujeito amargurado, acho que combinamos muitíssimo bem.

5 - Gil Luminoso, Gilberto Gil

Só uma queixa: a falta de Se Eu Quiser Falar Com Deus no repertório. No mais, irretocável. Um registro sonoro, um documento de uma época boa para mim.



RODRIGO L.

1 - A Love Supreme, John Coltrane

O mais próximo do divino que um homem pode chegar através de um instrumento de sopro.

2 - Bringing it all backhome, Bob Dylan

Como letrista, Dylan jamais voltaria a alcançar o nível de Gates Of Eden ou It's AlRight, Ma. Num momento decisivo de sua carreira, encontrou a melhor maneira de dizer adeus ao folk tradicional (It's All Over Now, Baby Blue) e a mais pungente forma de adentrar o mundo da música elétrica - como que acompanhado duma cavalaria bêbada, grava Subterranean Homesick Blues, Maggie's Farm e outros tantos clássicos do blues.

3 - A Tábua de Esmeralda, Jorge Ben

Trata-se, basicamente, da maior invenção de um cidadão brasileiro. Desde que o escutei pela primeira vez, persisto, sem sucesso, numa busca ingrata por um disco que junte, ao menos num nível parecido, tanta harmonia, balanço e melodia (e que se utilize de cordas tão atrozes). Com tudo na medida certa, Jorge Ben saiu gravando Os Alquimistas Estão Chegando, Zumbi, Menina Mulher da Pele Preta, Brother, a absurda Hermes Trimegisto E Sua Celeste Tábua e mais - uma sequência de doze faixas que talvez só tenha sido perseguida de perto por um Tim Maia convertido.

4 - Cartas Catingueiras, Elomar

Conheço gente que tem orgulho de ser nordestino. Por mais que soe estranha a idéia de se orgulhar por algo absolutamente fortuito, pelo que não se possui mérito algum, é muito provável que uma audição de Cartas Catingueiras traga certa vaidade a tais pessoas. A mim, porém, esta pequena obra-prima da canção sertaneja só me lembra que ser nordestino é uma condenação - por mais citadinos que nos tornemos com o correr dos anos, há sempre a nostalgia do mato, do lampião e da viola. Espero o dia em que alguém a cavalo, nomeado Donairoso Profeta do Óbvio, chegará à praça e afirmará que o homem responsável pela "Incelença Para um Poeta Morto" é o maior compositor brasileiro vivo.

5 - Cartola (1974), Cartola

O mais sublime e melancólico samba já feito. Dentro de uma tradição repleta de grandes letristas (Noel Rosa e Nelson Cavaquinho - só para citar meus preferidos) e de grandes musicistas (outra vez Noel, Paulinho, Adoniran, etc.) Cartola consegue se sobressair como o maior: o sentimento que percorre Disfarça e Chora, Sim e, sobretudo, Acontece (que considero, ao lado de Detalhes, a mais bela canção já escrita em língua portuguesa) é qualquer coisa universal, milenar - reconhecível em qualquer canto do globo e em qualquer época, Cartola é o mais local e universal dos músicos brasileiros. Uma contundente resposta a quem alardeia a alegria tupiniquim como uma entidade natural, imutável e imbatível.



DANIEL OLIVEIRA

1 - Songs, Leonard Cohen

Ainda bem que Cohen não nasceu nos EUA, já que na condição de canadense ele é o maior cantor/compositor de seu país – e que Neil Young vá às favas. Sendo assim, não fica à sombra de Bob Dylan, estadunidense. Leonard Cohen é, para mim, o exemplo máximo de integridade e condensação numa letra de música nos aspectos sonoro, semântico, lingüístico e espiritual. Quanto às canções, donas de melodias irrepreensíveis. No tocante à voz, comparável à de Deus, se esse existir.

2 - A banda do Zé Pretinho, Jorge Ben

A música, indiscutivelmente a mais sensorial das artes, desperta, sim, reações fisiológicas. E Jorge Ben é a prova maior disso – você sente na medula. Só Amante Amado, uma das faixas, já valeria uns 5 álbuns (e ainda bem que Jorge Ben tem dezenas de álbuns, porque excluir cinco deles não é fácil). Se algum brasileiro extraiu mais da palavra portuguesa que Jorge Ben Jor, ele não existe nesta dimensão.

3 - Trilhos Urbanos, Caetano Veloso

Assim como na Inglaterra e nos EUA todo e qualquer amante da música era obrigado por lei (não é mentira) a indicar um beatle favorito (o meu é Paul), aqui no Brasil nos sentimos no direito e no dever de escolher um álbum favorito de Caetano Veloso. Eu achava que seria impossível pôr algum disco à frente do Tropicália (ainda mais com Clarice e Onde Andarás), mas a união de composições como Terra, O Homem Velho, Odara e outros, além da faixa-título, me fizeram mudar de idéia. Talvez por ser focado bastante apenas em voz e violão, o álbum goza de prestígio imerecido (um prestígio baixíssimo, note-se).

4 - The Velvet Underground and Nico, The Velvet Underground

A morte mais insólita do rock é a de Nico: andava de bicicleta, tomou uma queda e morreu. A carreira musical mais insólita do rock é a de Lou Reed: composições geniais na banda, mas na extensa carreira solo apenas um CD que preste (o Transformer). As vozes dos cantores são insólitas; os riffs são insólitos; as letras também; e as linhas de baixo; e a capa do disco; tudo – e um álbum perfeitamente perfeito.

5 - Mingus Ah Um, Charles Mingus

Sempre considerei Mingus Ah Um meu CD predileto de jazz, embora por muito pouco (ganhando milimetricamente de algum de Miles Davis ou Coltrane). Mas me enganei: ouvindo novamente, cheguei à conclusão de que se me obrigassem, para ser bem trágico, a sacrificar metade da obra de Davis em prol deste Ah Um, eu não hesitaria nem um pouco.