terça-feira, abril 15

Seção UM CONTO! - nº 1

1ª Seção UM CONTO!

15/04/2008


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1) AVENTURA BÚLGARA, Kosztolányi Dezsö
por Rodrigo L.

s ő nyalni kezdi ezt az égi mézet..



Li exatos cinco contos de Kosztolányi Dezsö. Os cinco relatos necessários para que o autor se tornasse um dos meus cinco contistas favoritos. É provável que alguns leitores desconheçam o referido gênio - algo absolutamente compreensível se considerarmos a escassez de material literário húngaro nesta parte do mundo que nos coube - e por isso façamos as devidas apresentações: nasceu em 1885 e morreu em 1938. Aí pelo meio, escreveu poemas, romances, ensaios e contos. Diz-se que a contística é a parte menos valorizada de sua obra - fato que me deixa estupefato e sedento de conhecer sua poesia intraduzível.

Aventura Búlgara, vertido para o português por Paulo Rónai, é prova clara de uma grandeza solenemente ignorada, sepultada numa língua obscura de um país obscuro - língua e país fetiches de quem quer que tenha cruzado a Antologia do Conto Húngaro ou as páginas de Molnar ou Kaffka Margit. Narra, basicamente, a história de um viajante húngaro que, ao cruzar a Bulgária, decide entabular uma conversação (que atravessará a madrugada, cheia de reviravoltas, risos, lágrimas, confissões, brigas e reconciliações) com um nativo. O detalhe que tira o conto da obviedade é que o tal magiar não compreende mais do que quatro ou cinco palavras do idioma estrangeiro – o que não o impede até mesmo de ler uma carta no indecifrável alfabeto cirílico. O debate nutre-se, basicamente, de expressões corporais várias e sentenças como "Sim", "Não" e "É a vida" ("... uma frase que se adapta a todas as situações. Na vida não apareceu nunca nenhuma situação que não admitisse essa fórmula - É a vida - empregada mesmo quando alguém morre.").

O texto não carece de humor, de estilo, de concisão ou de qualquer outra característica que encontramos nos contos de Poe, Tchekhov ou Machado. Trata-se, claramente, da escritura de um grande artista, de um mestre do conto universal - do qual, vejam só, eu só li cinco contos.



2) O RABO DA SEREIA, Ildázio Tavares
por Eder Fernandes

A foto acima é do Maiakóvski. Não conseguimos encontrar nenhuma de Ildázio.


Desde o primeiro parágrafo do conto O Rabo da Sereia, de Ildázio Tavares*, as características da narração e o enredo já ficam muito claros: há um narrador confuso recordando uma paixão que o arrebatou certa vez e que até hoje deixou marcas – tanto que o fez “contar” a história.

Para fazer do personagem-narrador um sujeito confuso e passional, Ildázio se valeu muito bem de alguns recursos estilísticos. Primeiro, a narração bem calcada na memória; somando-se a isso uma característica do personagem-narrador: sua memória não é nada cronológica e sim, como mais adiante deixará escapar, inteiramente subjetiva. “É tudo muito difícil. Difícil até de contar. Sim porque certas pessoas têm uma memória minuciosa, guardam tudo muito bem guardado (...) E no meu caso não há nada que se aproxime da lógica”. Segundo recurso: a opção em usar vírgulas quando há mais fluxo de consciência do que simples relatos; bem como a utilização do ponto de segmento nos trechos onde a narração necessita de lucidez e cadência. Essa possibilidade de alternar o ritmo do texto por via dos pontos e das vírgulas, além de ressaltar a confusão do narrador – porque essa alternância passa às vezes uma idéia de incoerência --, ilustra o desassossego de um homem apaixonado: “Paixão não é brinquedo”.

A mulher por quem o personagem-narrador está apaixonado é na verdade uma menina de “13 ou 15 anos”. Ele tem 40. Homens mais velhos que se apaixonam perdidamente por meninas ainda em flor já se tornaram um tema célebre na literatura. O romance Lolita, de Nabokov, é talvez o ponto mais alto. Há poucas semelhanças entre a Dolores Haze de Nabokov e a Elena de Ildázio. No entanto, certas semelhanças possam vir da personalidade atribuída a meninas dessa faixa etária: impulsivas, intransigentes etc, etc. Enfim, Elena ainda é mais pueril do que a personagem nabokoviana, nitidamente sensual.

Como foi esboçado nos parágrafos acima, o enredo de O Rabo da Sereia é: um homem relembrando as vicissitudes de uma paixão avassaladora por uma adolescente, relatando os fatos em uma seqüência pouco nítida, não obstante - se debruçarmos mais atentamente sobre o texto - com um começo, um meio e um fim.

O final, aliás, é o grande momento do conto. Quando, notando um ligeiro desinteresse de Elena por ele, o personagem-narrador resolve não procurá-la mais. Depois se questionando se teria feito o mais correto, conclui que “não é preferível instalar a dúvida numa certeza total”. A “certeza total” seria o amor que Elena sentia por ele, a “dúvida” naturalmente seria o ciúme. Sentimento esse tão caro a todos personagens da literatura que viveram o mesmo drama de se apaixonar por uma menina bem mais nova. Ildázio, inteligente, não se furtou de atribuir esse sentimento a seu personagem.

* Ildázio Tavares: escritor baiano. O conto foi lido na Antologia Panorâmica do Conto Baiano do Século XX.



3) ANGÚSTIA, Anton P. Tchekhov
por Daniel Oliveira

Se me obrigassem a escolher um único conto que marcou definitivamente minha vida (tanto pessoal quanto literária), eu pediria mil desculpas a Machado, Maupassant e Bioy; porque eu escolheria Angústia, de Anton P. Tchekhov.

Uma breve confissão: eu já escrevi. Também já enveredei pelas trilhas da criação literária. Eu só escrevia contos, até ler Tchekhov. Agora não escrevo mais nada.

O conto é magistral. Independente e acessível, sua narrativa não necessita de uma releitura sobre outra perspectiva para a consumação plena. Devemos lembrar da tradução de Boris Schnaiderman, aquele que está para Tchekhov assim como Modesto Carone está para Kafka. Além da sublime contística do mestre russo, a história em si é pungente, e se perdoa muita coisa num texto por causa de sua comoção. Elogia-se até mesmo livros como O caçador de pipas, romance literariamente medíocre cuja história contém poderosa carga emotiva.

Eu poderia lembrar que Tchekhov reinventou o papel do narrador, a entrelinha, o dito e o não-dito; mas o conto Angústia não é apenas importante: ele é genial e acima de tudo atemporal. Publique-o em qualquer época de qualquer cultura e o efeito será o mesmo. Um bom número de valores universais se encontra aí, tudo em menos de dez páginas, o que é assombroso. Aleksandr Tchekhov, irmão do autor, lhe escreveu uma carta a respeito do trecho final do conto: “Eu naturalmente estou exagerando, mas nesta passagem você é imortal”. Na primeira lida, pensamos que o irmão de Tchekhov realmente exagerou um pouquinho. Na segunda, passamos a achar que não. E na terceira percebemos que o tal do Aleksandr foi modesto até demais.

Há contos e contos. Há autores e autores. E há Tchekhov. Todo mundo sabe disso. Qualquer pessoa de bom senso consegue perceber.



4) TLÖN, UQBAR, ORBIS TERTIUS, Jorge Luis Borges
por Davi Lara

Acabei de reler o conto de entrada de Ficções em uma edição da Globo com um ensaio crítico introdutório. Pulei a introdução, me reti no prólogo do autor, e assim como me lembrava, também desta vez, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius me pareceu impecável. Não vou listar aqui as qualidades do conto, mas antes me fixar na sua faceta que mais me encanta.

A literatura fantástica se constitui, a grosso modo, a partir da negação da realidade. No Realismo Fantástico (gênero literário que tem, a meu ver, no conto em questão a sua representação mais completa) sua construção se faz na criação de um mundo de regras bem definidas que forma-se uma realidade paralela à Realidade dos homens de carne e osso. Uma característica de Borges é a reflexão sobre a literatura; sobretudo a sua literatura. Isso se dá tanto nos ensaios, e menos nos prólogos (sempre lúcidos, mas curtos) aos seus próprios livros, quanto nos seus contos.

Desconheço qualquer trabalho acerca da obra de J.L.B. com exceção de um ensaio que li esperando um amigo na biblioteca para passar o tempo e do qual pouca coisa lembro. Por essa ignorância me arrisco, com grande probabilidade, a repetir o que já foi dito. Porém, acredito valer a pena dividir minha opinião, que se não nova, assim quero crer, é legítima.

Neste conto somos guiados por um labirinto (estrutura cara ao autor) onde o penetrar da fantasia na realidade, e vice versa, nos chega a um final onde a realidade convive com elementos anteriormente exclusivos da imaginação. Por meio de Bioy Casares (amigo de J.L.B. no mundo real e escritor) e de um acaso ( a "...conjunção de um espelho e de uma enciclopédia...") Borges descobre um país inventado: Uqbar. A partir de Uqbar, uma curiosidade fixa e mais acasos, descobre um mundo: Tlön, onde o conto se detém em sua descrição por um longo tempo conforme a XI edição da enciclopédia Orbis Tertius – o próprio planeta Tlön é criação da literatura de Uqbar que, negligenciando a realidade, se referia “... às duas regiões imaginarias de Mlejnas e de Tlön...”. Aumenta-se a complexidade do labirinto tomando-se em conta que Tlön, por si só, tem uma literatura esmiuçada no texto.

Ao final do conto Tlön não é mais uma abstração, mas uma realidade penetrando a outra, ameaçando tornar esta aquela. Excluindo-se as particularidades: partimos de um mundo criado, desse mundo cria-se outro mundo, que por sua vez se vinga, se tornando tão real quanto o primeiro mundo; daí temos, portanto, um novo ponto de partida. Um labirinto sem fim: se ampliarmos, por exemplo, essa dinâmica para o JLB real criando outro JLB e um ABC fictícios.

JLB que é na literatura a melhor representação da união entre o literato e o intelectual, utiliza-se dos seus contos para expor suas idéias muitas vezes já expostas em seus ensaios. Em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius JLB trata da questão do realismo fantástico, dentre outras coisas, e com uma consistência no plano das idéias tanta quanto no plano da criação literária. Uma conclusão redundante: um dos melhores contos já compostos.

domingo, abril 13

Seção TOP 5 - nº 1

TOP 5
Nº 1


5 ÁLBUNS PREDILETOS


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DAVI LARA

1 - Bethânia canta Caetano, Maria Bethânia

A priori, uma coletânea não poderia constar nesta lista. Mas tendo em conta o repertório coeso (temática, estilo, cor, etc), uma refinada disposição das faixas e os arranjos espantosamente combinando entre si, essa premissa é dispensada. Ainda não houve álbum que tenha tido tanta repercussão (e que persiste) em mim, multiplicando-se em ecos nas paredes internas de meus estômagos e da minha caixa craniana. Não há momento em que eu não o escute.

2 - Tropicália, Caetano Veloso

Caetano é uma constante em meus assuntos e em minha leituras de mundo. Escuto Caetano desde criança e desde então adquiri o hábito (ou o hábito me adquiriu) de renovar o olhar sobre sua obra, fazer relarem-se outras facetas. Tropicália representa minha mais recente e feliz descoberta.

3 - Gil Luminoso, Gilberto Gil

A simples rúbrica de Gilberto Gil é motivo mais que suficiente para esse álbum estar nesta lista. Gil Luminoso é especial dentre tantos outros álbuns de Gil porque traz o foco dos arranjos e interpretações para as canções. Canções delicadas, contemplativas e com o vigor das obras impecáveis.

4 - Let it Be Naked, The Beatles

A minha descoberta dos Beatles (um marco e uma alegria pra mim) se deu por esse álbum. Mas dentre tantos outros mais bem acabados, se os próprios Beatles não ostentam especial orgulho pelo Let it Be, pra mim ele revela sem maquiagens e esplendidamente aquilo que mais sei gostar na música: boas canções.

5 - Acabou Chorare, Novos Baianos

Por ter conquistado minha confiança aos poucos, por representar uma cultura nacional e baiana e me dar algum modo de identificação com o lugar em que vivo. Enfim, porque eu gosto de Novos Baianos.



EDER FERNANDES

1 - Chega de Saudade, João Gilberto

Se João Gilberto é, para mim, o melhor intérprete que o planeta Terra já concebeu, e se a própria música Chega de Saudade é a minha predileta dentre todas já compostas, logo não seria surpresa nenhuma o disco encabeçar essa lista tão difícil.

2 - Abbey Road, The Beatles

Os melhores de todos os tempos fizeram em seu disco de despedida o que mais sabem fazer: emocionar gerações e gerações.

3 - Coisas, Moacir Santos

Fiquei horas indeciso entre três discos de jazz: Kind of Blue, do Miles; My Favorite Things, do Coltrane; ou Coisas, do Moacir. Escolhi Moacir por um simples motivo: não sei.

4 - Blood on the Tracks, Bob Dylan

O disco mais amargo da música popular. Sendo eu um sujeito amargurado, acho que combinamos muitíssimo bem.

5 - Gil Luminoso, Gilberto Gil

Só uma queixa: a falta de Se Eu Quiser Falar Com Deus no repertório. No mais, irretocável. Um registro sonoro, um documento de uma época boa para mim.



RODRIGO L.

1 - A Love Supreme, John Coltrane

O mais próximo do divino que um homem pode chegar através de um instrumento de sopro.

2 - Bringing it all backhome, Bob Dylan

Como letrista, Dylan jamais voltaria a alcançar o nível de Gates Of Eden ou It's AlRight, Ma. Num momento decisivo de sua carreira, encontrou a melhor maneira de dizer adeus ao folk tradicional (It's All Over Now, Baby Blue) e a mais pungente forma de adentrar o mundo da música elétrica - como que acompanhado duma cavalaria bêbada, grava Subterranean Homesick Blues, Maggie's Farm e outros tantos clássicos do blues.

3 - A Tábua de Esmeralda, Jorge Ben

Trata-se, basicamente, da maior invenção de um cidadão brasileiro. Desde que o escutei pela primeira vez, persisto, sem sucesso, numa busca ingrata por um disco que junte, ao menos num nível parecido, tanta harmonia, balanço e melodia (e que se utilize de cordas tão atrozes). Com tudo na medida certa, Jorge Ben saiu gravando Os Alquimistas Estão Chegando, Zumbi, Menina Mulher da Pele Preta, Brother, a absurda Hermes Trimegisto E Sua Celeste Tábua e mais - uma sequência de doze faixas que talvez só tenha sido perseguida de perto por um Tim Maia convertido.

4 - Cartas Catingueiras, Elomar

Conheço gente que tem orgulho de ser nordestino. Por mais que soe estranha a idéia de se orgulhar por algo absolutamente fortuito, pelo que não se possui mérito algum, é muito provável que uma audição de Cartas Catingueiras traga certa vaidade a tais pessoas. A mim, porém, esta pequena obra-prima da canção sertaneja só me lembra que ser nordestino é uma condenação - por mais citadinos que nos tornemos com o correr dos anos, há sempre a nostalgia do mato, do lampião e da viola. Espero o dia em que alguém a cavalo, nomeado Donairoso Profeta do Óbvio, chegará à praça e afirmará que o homem responsável pela "Incelença Para um Poeta Morto" é o maior compositor brasileiro vivo.

5 - Cartola (1974), Cartola

O mais sublime e melancólico samba já feito. Dentro de uma tradição repleta de grandes letristas (Noel Rosa e Nelson Cavaquinho - só para citar meus preferidos) e de grandes musicistas (outra vez Noel, Paulinho, Adoniran, etc.) Cartola consegue se sobressair como o maior: o sentimento que percorre Disfarça e Chora, Sim e, sobretudo, Acontece (que considero, ao lado de Detalhes, a mais bela canção já escrita em língua portuguesa) é qualquer coisa universal, milenar - reconhecível em qualquer canto do globo e em qualquer época, Cartola é o mais local e universal dos músicos brasileiros. Uma contundente resposta a quem alardeia a alegria tupiniquim como uma entidade natural, imutável e imbatível.



DANIEL OLIVEIRA

1 - Songs, Leonard Cohen

Ainda bem que Cohen não nasceu nos EUA, já que na condição de canadense ele é o maior cantor/compositor de seu país – e que Neil Young vá às favas. Sendo assim, não fica à sombra de Bob Dylan, estadunidense. Leonard Cohen é, para mim, o exemplo máximo de integridade e condensação numa letra de música nos aspectos sonoro, semântico, lingüístico e espiritual. Quanto às canções, donas de melodias irrepreensíveis. No tocante à voz, comparável à de Deus, se esse existir.

2 - A banda do Zé Pretinho, Jorge Ben

A música, indiscutivelmente a mais sensorial das artes, desperta, sim, reações fisiológicas. E Jorge Ben é a prova maior disso – você sente na medula. Só Amante Amado, uma das faixas, já valeria uns 5 álbuns (e ainda bem que Jorge Ben tem dezenas de álbuns, porque excluir cinco deles não é fácil). Se algum brasileiro extraiu mais da palavra portuguesa que Jorge Ben Jor, ele não existe nesta dimensão.

3 - Trilhos Urbanos, Caetano Veloso

Assim como na Inglaterra e nos EUA todo e qualquer amante da música era obrigado por lei (não é mentira) a indicar um beatle favorito (o meu é Paul), aqui no Brasil nos sentimos no direito e no dever de escolher um álbum favorito de Caetano Veloso. Eu achava que seria impossível pôr algum disco à frente do Tropicália (ainda mais com Clarice e Onde Andarás), mas a união de composições como Terra, O Homem Velho, Odara e outros, além da faixa-título, me fizeram mudar de idéia. Talvez por ser focado bastante apenas em voz e violão, o álbum goza de prestígio imerecido (um prestígio baixíssimo, note-se).

4 - The Velvet Underground and Nico, The Velvet Underground

A morte mais insólita do rock é a de Nico: andava de bicicleta, tomou uma queda e morreu. A carreira musical mais insólita do rock é a de Lou Reed: composições geniais na banda, mas na extensa carreira solo apenas um CD que preste (o Transformer). As vozes dos cantores são insólitas; os riffs são insólitos; as letras também; e as linhas de baixo; e a capa do disco; tudo – e um álbum perfeitamente perfeito.

5 - Mingus Ah Um, Charles Mingus

Sempre considerei Mingus Ah Um meu CD predileto de jazz, embora por muito pouco (ganhando milimetricamente de algum de Miles Davis ou Coltrane). Mas me enganei: ouvindo novamente, cheguei à conclusão de que se me obrigassem, para ser bem trágico, a sacrificar metade da obra de Davis em prol deste Ah Um, eu não hesitaria nem um pouco.

terça-feira, abril 1

Seção DESMITIFICANDO Nº 1

DESMITIFICANDO nº1

01/04/2008

DARREN ARONOFSKY: MARCHA FÚNEBRE PARA UM PESADELO.

por Daniel Oliveira



Eu estava me perguntando se seria interessante escrever sobre o filme Réquiem para um Sonho, de Darren Aronofsky. Na verdade, pensei em escrever sobre algum dos três filmes que mais me intrigam na história do cinema. Filmes que fazem sucesso de público e crítica e aparecem em prestigiosas listas de melhores obras, mas que não possuem, a meu ver, qualidade para tal. Existem vários, decerto, mas esses três em particular merecem atenção: O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, Lanternas Vermelhas e Cinema Paradiso. Fico angustiado quando leio críticas sobre Lanternas Vermelhas, nas quais os entendidos elogiam as “cores” do filme e atentam para o fato do marido garanhão não ter seu rosto revelado, como se essa superficialidade fosse algo genial. Um torpor me invade o espírito quando leio sobre Amélie Poulain e seu louvor às pequenas alegrias da vida; as veias se dilatam e pulsam freneticamente quando escuto ou leio pessoas afirmarem que Cinema Paradiso é a maior homenagem ao cinema já feita.

Mas: Lanternas Vermelhas é um bom filme, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain não é ruim e Cinema Paradiso, embora ruim, é até tocante. Portanto, vamos esquecer os três. Vamos falar de Réquiem para um Sonho, que também se encaixa nesse grupo dos superestimados mas com a diferença de que aqui o caso é muito mais crítico, escandaloso e imperdoável.


Esse é o tal do Aronofsky.

Das duas uma: ou o saudosismo é uma canalhice, ou é uma ignorância. Pelo menos é o que pensam os otimistas de plantão, aqueles que por motivos desconhecidos tentam salvar e pôr acima de tudo a sua geração. Se sentimos um arrepio na espinha ao ouvir a palavra “contemporâneo”, este precisa ser de satisfação, não de repúdio. Mas eu afirmo e reitero, sem medo algum (ok, só um pouquinho): a arte está morrendo. Não é pessimismo, nem é rabugice. É lógica: a arte é vida; e tudo o que é vivo, morre. Porém, assim como os humanos possuem grande apego às suas vidas, a arte consegue caminhar aos trancos e barrancos. Em toda geração há um pequeno grupo (cada vez menor a cada transição) que acaba salvando sua época. Em Hollywood, por exemplo, há uma galerinha nova e boa que vem deixando bastante orgulhosa a terra do tio Sam (não tão nova: segunda metade dos anos 90 e começo do século XXI). Diretores como David Fincher, Todd Haynes, Richard Linklater, Paul Thomas Anderson, Alexander Payne, Wes Anderson, Sofia Coppola, Spike Jonze e David O. Russell provam que ainda se fazem bons filmes no esgoto mais podre do cinema.

Que hoje em dia existem diretores bons, todos sabem. Que existem escritores bons também. E músicos e álbuns. Quando evocamos o passado, não queremos invalidar todas as obras do nosso tempo. Quando dizemos que não se fazem mais filmes como antigamente não queremos tirar o mérito de belas obras como Adaptação. ou Os Excêntricos Tenenbaums. Falamos isso simplesmente para dar mais ênfase ao nosso julgamento de algo que nos é repulsivo. E se há os tolos que lamentam mortes de Bergmans e dizem que ninguém superará Fellini, e que a maior obra em prosa da literatura é Dom Quixote, e que samba de verdade mesmo só Cartola e Noel Rosa, há também os grandes precipitados que exaltam exacerbadamente os artistas do seu meio geográfico e temporal, fazendo a ingênua associação de “renovação” com “coisas novas”. Que ninguém supera Fellini é algo bastante discutível. Há, sem a menor dúvida, diretores melhores que ele. Um deles, com toda a certeza que Deus deu aos homens deste mundo, NÃO É Darren Aronofsky. Esse figuraça de nome esquisisto é, talvez, ao lado de Gus Van Sant, os dois piores pseudo-bons-diretores dessa geração do cinema dos EUA. Sabe aquelas idéias que os estrangeiros e até mesmo nós temos da Amazônia, Acre e região, de que tudo lá é só índios, rios e selvageria? Ou então nossa visão da Ásia Oriental, que parece ser composta somente de samurais e gueixas? Pois é exatamente o que Gus Van Sant faz com os adolescentes e jovens em geral nos seus filmes. O odioso estereótipo criado por este abominável diretor é motivo mais que suficiente (mas não o único) para lhe darmos uma tremenda surra. Retratos mais verossímeis e menos ofensivos como Juno vêm surgindo na praça para desmascarar o infeliz do Van Sant. Ainda não perdi as esperanças.

Gus Van Sant: bizarro.


Quando falamos bem de um artista, voltamos os olhos apenas para as suas obras decentes. Quando se diz que Almodóvar é um grande diretor, está-se considerando apenas filmes como Fale com ela e Tudo sobre minha mãe. Não se lembram de mediocridades como Volver, Ata-me, O Matador, etc, etc. Por que não o contrário? Eu penso que sim: é muito possível dizer que Darren Aronofsky é horrível sem ter assistido a todos os seus filmes. E se um ser humano concebe uma adaptação cinematográfica como Réquiem para um Sonho, ele já não estaria condenado para toda a vida? O livro homônimo eu não li, mas é ruim. Se for literatura, não presta; se for, jornalístico, é parcial; se for livro de memórias, é apelativo; mas com certeza deve ser algumas dúzias de vezes melhor que o filme.

(ATENÇÃO: a partir daqui o post contém spoilers)

Réquiem para um Sonho está para o cinema assim como Engenheiros do Hawaii está para a música brasileira. Também possui, como a banda gaúcha, seu pequeno círculo de fanáticos e relativa fama de público e crítica. Dividirei o post em tópicos, para me controlar e não sair digitando verbetes impublicáveis.

TÍTULO: Ruim demais. É o mesmo do livro (só de pensar que um filme desses veio de um romance...). Quer soar distinto, tem até certo sentido, porém superficial. O mais interessante é que a tradução é literal (o original é Requiem for a Dream). O segundo pior título que já vi em filmes (o primeiro é Coisas que você pode dizer só de olhar para ela, de Rodrigo García, tradução também literal).

ENREDO E ROTEIRO: Tramas paralelas de quatro pessoas que se dão muito mal por causa das drogas. A história é batida, mas não é isso que interessa: o problema é que as personagens não possuem a complexidade que um filme com essa proposta exige. Não existe nenhuma oscilação, nenhum ruído em seus espíritos (é tudo caricaturado, fixo). A narrativa, ao contrário do natural, não é labiríntica: é novelesca e previsível. A previsão mais irritante que podemos fazer é a da personagem de Jennifer Connelly: todo mundo sabe que a infeliz vai acabar sendo humilhada para conseguir mais droga, e essa humilhação não poderia ser outra senão sexual. O roteiro é umas dez vezes pior. O humor adolescente, a apelação pueril para o sexo, preconceitos implícitos, o preceito de que “quanto mais chocante melhor” e a tentativa de soar perturbador realmente “desconcertam” o espectador; mas se desconcertam alguma coisa, é apenas a barriga, que se contorce de tanto rir. Eis um diálogo:

– Sabe o que mais gosto nas garotas brancas? (NEGÃO TRAFICANTE)
– O quê? (Jennifer Connelly)
– Elas sabem chupar. As negras não chupam bem. (NEGÃO TRAFICANTE)

É preciso explicar: em certo momento os viciados estão sem dinheiro, e a mocinha, que é namorada do branquelo, lhe pede grana. Este, pressionado e desesperado, lhe dá o endereço de um Negão Monstruoso, o “Little John”, que possui muita droga, mas que não vende por dinheiro, e sim por mulheres. Detalhe: no início do filme, o negão amigo do branquelo comentou por alto a existência desse Negão Traficante “viciado em xota”. Incrível, não? Vicissitudes convenientes para um desenrolar engenhoso ou imprevisível é uma das piores coisas que existe nos roteiros desses últimos tempos.

Fotografia altamente lugar-comum, considerada por muitos portadora de uma "beleza plástica inegável".


ATUAÇÕES: Todo mundo sabe que a ética e o escrúpulo não existem mais nos dias de hoje. Mas, ainda assim, dói o coração ver atores aceitarem alguns papéis em certos tipos de filme. Jared Leto é o pior de todos. Nunca pensei que um dia poria algum ator abaixo de Jude Law. O fenomenal Marlon Wayans, estrela, entre outros, de As branquelas e Todo Mundo em Pânico, deve ter se exilado nas primeiras semanas de exibição, para não correr o risco de ser assassinado. Ellen Burstyn, a mãe de Leto, que chegou a ser nomeada ao Oscar, é a prova maior de que a Síndrome dos Superestimados chega até mesmo nos velhotes da Academia. Devo dizer, entretanto, que sua atuação é a única que não suscita o desejo de matar. A belíssima Jennifer Connelly e seu inegável valor cênico – valor extremamente baixo, diga-se de passagem – nem mesmo está bonita; nem mesmo a estética de sua feiúra de drogada é bonita.

DIREÇÃO, CÂMERA: Não vou discorrer aqui sobre a direção de Darren Aronofsky senão acabarei lançando um livro intitulado “Como não fazer filmes”. Se alguém se atrever a chamá-lo de original, mandarei assistir Shinya Tsukamoto para calar a boca. Tem uma cena em que Marlon Wayans, o negão amigo do branquelo, faz sexo com uma mulher qualquer (ainda hoje me é inexplicável essa cena). O ângulo da câmera os foca por cima e vai girando e subindo, enquanto rola o entra-e-sai em câmera lenta. Nem em clipes de Hip-hop estadunidense vi coisa parecida.

EDIÇÃO, MONTAGEM: É preciso entender que ousadia nem sempre é sinônimo de coisa boa. E a ousadia da montagem e da edição desse filme, ao invés de nos deixar empolgados e tensos (com certeza esse era o propósito), provoca uma verdadeira dor de cabeça que, se houvesse justiça no mundo, poderia nos render uma boa grana, pois poderíamos processar a produtora responsável pelos danos de efeito físico e moral causados pelo longa. Um último detalhe: no programa de TV o qual a mãe do branquelo é obcecada, o apresentador é Christopher McDonald, o melhor ator do filme. O cara é engraçado demais.

Contabilizando:

PONTOS POSITIVOS:
– Christopher McDonald.

PONTOS NEGATIVOS:
– Todo o resto.

Cena do filme FONTE DA VIDA.


O último filme de Aronofsky, Fonte da Vida, é, no mínimo, bisonho. Embora seja menos constrangedor que Requiém, é muito mais infantil. O mérito que Aronofsky recebeu por tal obra é realmente insólito e previsível: peguemos um papel e escrevamos uma história moderna baseada em alguma lenda antiga; relativizemos tudo; imaginemos uma transcendência; passemos por cima das hipérboles; gastemos milhões de dólares e façamos uma produção grandiosa cheia de cores e luzes brancas; melodramas; amor; vida; morte; está aí o filme - até eu poderia tê-lo dirigido. Os defensores do diretor ainda se sentem satisfeitos pelo fato de Fonte da Vida ser polarizado, isto é, admirado por uns e vaiado por tantos outros. O interessante é que Aronofsky esperou anos para a realização desse projeto. Uma pena.

A única proeza realizada por Darren Aronofsky no meio cinematográfico foi ter se acasalado com Rachel Weisz.


O longa-metragem que eu não assisti é Pi – desse eu saio correndo. Só de olhar o nome já sei que vem bomba: o título é de fato o símbolo matemático “Pi”; com certeza o filme tem alguma “sacada” inteligente (leia-se adolescente) bem típica.

Não assistam Darren Aronofsky. Cada vez que tentarem lhe emprestar um filme dele e você recusar, será como ter assistido a 5 bons filmes. Eu garanto; juro por todas as moedas que já jogaram neste fundo de poço.