terça-feira, abril 15

Seção UM CONTO! - nº 1

1ª Seção UM CONTO!

15/04/2008


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1) AVENTURA BÚLGARA, Kosztolányi Dezsö
por Rodrigo L.

s ő nyalni kezdi ezt az égi mézet..



Li exatos cinco contos de Kosztolányi Dezsö. Os cinco relatos necessários para que o autor se tornasse um dos meus cinco contistas favoritos. É provável que alguns leitores desconheçam o referido gênio - algo absolutamente compreensível se considerarmos a escassez de material literário húngaro nesta parte do mundo que nos coube - e por isso façamos as devidas apresentações: nasceu em 1885 e morreu em 1938. Aí pelo meio, escreveu poemas, romances, ensaios e contos. Diz-se que a contística é a parte menos valorizada de sua obra - fato que me deixa estupefato e sedento de conhecer sua poesia intraduzível.

Aventura Búlgara, vertido para o português por Paulo Rónai, é prova clara de uma grandeza solenemente ignorada, sepultada numa língua obscura de um país obscuro - língua e país fetiches de quem quer que tenha cruzado a Antologia do Conto Húngaro ou as páginas de Molnar ou Kaffka Margit. Narra, basicamente, a história de um viajante húngaro que, ao cruzar a Bulgária, decide entabular uma conversação (que atravessará a madrugada, cheia de reviravoltas, risos, lágrimas, confissões, brigas e reconciliações) com um nativo. O detalhe que tira o conto da obviedade é que o tal magiar não compreende mais do que quatro ou cinco palavras do idioma estrangeiro – o que não o impede até mesmo de ler uma carta no indecifrável alfabeto cirílico. O debate nutre-se, basicamente, de expressões corporais várias e sentenças como "Sim", "Não" e "É a vida" ("... uma frase que se adapta a todas as situações. Na vida não apareceu nunca nenhuma situação que não admitisse essa fórmula - É a vida - empregada mesmo quando alguém morre.").

O texto não carece de humor, de estilo, de concisão ou de qualquer outra característica que encontramos nos contos de Poe, Tchekhov ou Machado. Trata-se, claramente, da escritura de um grande artista, de um mestre do conto universal - do qual, vejam só, eu só li cinco contos.



2) O RABO DA SEREIA, Ildázio Tavares
por Eder Fernandes

A foto acima é do Maiakóvski. Não conseguimos encontrar nenhuma de Ildázio.


Desde o primeiro parágrafo do conto O Rabo da Sereia, de Ildázio Tavares*, as características da narração e o enredo já ficam muito claros: há um narrador confuso recordando uma paixão que o arrebatou certa vez e que até hoje deixou marcas – tanto que o fez “contar” a história.

Para fazer do personagem-narrador um sujeito confuso e passional, Ildázio se valeu muito bem de alguns recursos estilísticos. Primeiro, a narração bem calcada na memória; somando-se a isso uma característica do personagem-narrador: sua memória não é nada cronológica e sim, como mais adiante deixará escapar, inteiramente subjetiva. “É tudo muito difícil. Difícil até de contar. Sim porque certas pessoas têm uma memória minuciosa, guardam tudo muito bem guardado (...) E no meu caso não há nada que se aproxime da lógica”. Segundo recurso: a opção em usar vírgulas quando há mais fluxo de consciência do que simples relatos; bem como a utilização do ponto de segmento nos trechos onde a narração necessita de lucidez e cadência. Essa possibilidade de alternar o ritmo do texto por via dos pontos e das vírgulas, além de ressaltar a confusão do narrador – porque essa alternância passa às vezes uma idéia de incoerência --, ilustra o desassossego de um homem apaixonado: “Paixão não é brinquedo”.

A mulher por quem o personagem-narrador está apaixonado é na verdade uma menina de “13 ou 15 anos”. Ele tem 40. Homens mais velhos que se apaixonam perdidamente por meninas ainda em flor já se tornaram um tema célebre na literatura. O romance Lolita, de Nabokov, é talvez o ponto mais alto. Há poucas semelhanças entre a Dolores Haze de Nabokov e a Elena de Ildázio. No entanto, certas semelhanças possam vir da personalidade atribuída a meninas dessa faixa etária: impulsivas, intransigentes etc, etc. Enfim, Elena ainda é mais pueril do que a personagem nabokoviana, nitidamente sensual.

Como foi esboçado nos parágrafos acima, o enredo de O Rabo da Sereia é: um homem relembrando as vicissitudes de uma paixão avassaladora por uma adolescente, relatando os fatos em uma seqüência pouco nítida, não obstante - se debruçarmos mais atentamente sobre o texto - com um começo, um meio e um fim.

O final, aliás, é o grande momento do conto. Quando, notando um ligeiro desinteresse de Elena por ele, o personagem-narrador resolve não procurá-la mais. Depois se questionando se teria feito o mais correto, conclui que “não é preferível instalar a dúvida numa certeza total”. A “certeza total” seria o amor que Elena sentia por ele, a “dúvida” naturalmente seria o ciúme. Sentimento esse tão caro a todos personagens da literatura que viveram o mesmo drama de se apaixonar por uma menina bem mais nova. Ildázio, inteligente, não se furtou de atribuir esse sentimento a seu personagem.

* Ildázio Tavares: escritor baiano. O conto foi lido na Antologia Panorâmica do Conto Baiano do Século XX.



3) ANGÚSTIA, Anton P. Tchekhov
por Daniel Oliveira

Se me obrigassem a escolher um único conto que marcou definitivamente minha vida (tanto pessoal quanto literária), eu pediria mil desculpas a Machado, Maupassant e Bioy; porque eu escolheria Angústia, de Anton P. Tchekhov.

Uma breve confissão: eu já escrevi. Também já enveredei pelas trilhas da criação literária. Eu só escrevia contos, até ler Tchekhov. Agora não escrevo mais nada.

O conto é magistral. Independente e acessível, sua narrativa não necessita de uma releitura sobre outra perspectiva para a consumação plena. Devemos lembrar da tradução de Boris Schnaiderman, aquele que está para Tchekhov assim como Modesto Carone está para Kafka. Além da sublime contística do mestre russo, a história em si é pungente, e se perdoa muita coisa num texto por causa de sua comoção. Elogia-se até mesmo livros como O caçador de pipas, romance literariamente medíocre cuja história contém poderosa carga emotiva.

Eu poderia lembrar que Tchekhov reinventou o papel do narrador, a entrelinha, o dito e o não-dito; mas o conto Angústia não é apenas importante: ele é genial e acima de tudo atemporal. Publique-o em qualquer época de qualquer cultura e o efeito será o mesmo. Um bom número de valores universais se encontra aí, tudo em menos de dez páginas, o que é assombroso. Aleksandr Tchekhov, irmão do autor, lhe escreveu uma carta a respeito do trecho final do conto: “Eu naturalmente estou exagerando, mas nesta passagem você é imortal”. Na primeira lida, pensamos que o irmão de Tchekhov realmente exagerou um pouquinho. Na segunda, passamos a achar que não. E na terceira percebemos que o tal do Aleksandr foi modesto até demais.

Há contos e contos. Há autores e autores. E há Tchekhov. Todo mundo sabe disso. Qualquer pessoa de bom senso consegue perceber.



4) TLÖN, UQBAR, ORBIS TERTIUS, Jorge Luis Borges
por Davi Lara

Acabei de reler o conto de entrada de Ficções em uma edição da Globo com um ensaio crítico introdutório. Pulei a introdução, me reti no prólogo do autor, e assim como me lembrava, também desta vez, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius me pareceu impecável. Não vou listar aqui as qualidades do conto, mas antes me fixar na sua faceta que mais me encanta.

A literatura fantástica se constitui, a grosso modo, a partir da negação da realidade. No Realismo Fantástico (gênero literário que tem, a meu ver, no conto em questão a sua representação mais completa) sua construção se faz na criação de um mundo de regras bem definidas que forma-se uma realidade paralela à Realidade dos homens de carne e osso. Uma característica de Borges é a reflexão sobre a literatura; sobretudo a sua literatura. Isso se dá tanto nos ensaios, e menos nos prólogos (sempre lúcidos, mas curtos) aos seus próprios livros, quanto nos seus contos.

Desconheço qualquer trabalho acerca da obra de J.L.B. com exceção de um ensaio que li esperando um amigo na biblioteca para passar o tempo e do qual pouca coisa lembro. Por essa ignorância me arrisco, com grande probabilidade, a repetir o que já foi dito. Porém, acredito valer a pena dividir minha opinião, que se não nova, assim quero crer, é legítima.

Neste conto somos guiados por um labirinto (estrutura cara ao autor) onde o penetrar da fantasia na realidade, e vice versa, nos chega a um final onde a realidade convive com elementos anteriormente exclusivos da imaginação. Por meio de Bioy Casares (amigo de J.L.B. no mundo real e escritor) e de um acaso ( a "...conjunção de um espelho e de uma enciclopédia...") Borges descobre um país inventado: Uqbar. A partir de Uqbar, uma curiosidade fixa e mais acasos, descobre um mundo: Tlön, onde o conto se detém em sua descrição por um longo tempo conforme a XI edição da enciclopédia Orbis Tertius – o próprio planeta Tlön é criação da literatura de Uqbar que, negligenciando a realidade, se referia “... às duas regiões imaginarias de Mlejnas e de Tlön...”. Aumenta-se a complexidade do labirinto tomando-se em conta que Tlön, por si só, tem uma literatura esmiuçada no texto.

Ao final do conto Tlön não é mais uma abstração, mas uma realidade penetrando a outra, ameaçando tornar esta aquela. Excluindo-se as particularidades: partimos de um mundo criado, desse mundo cria-se outro mundo, que por sua vez se vinga, se tornando tão real quanto o primeiro mundo; daí temos, portanto, um novo ponto de partida. Um labirinto sem fim: se ampliarmos, por exemplo, essa dinâmica para o JLB real criando outro JLB e um ABC fictícios.

JLB que é na literatura a melhor representação da união entre o literato e o intelectual, utiliza-se dos seus contos para expor suas idéias muitas vezes já expostas em seus ensaios. Em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius JLB trata da questão do realismo fantástico, dentre outras coisas, e com uma consistência no plano das idéias tanta quanto no plano da criação literária. Uma conclusão redundante: um dos melhores contos já compostos.

2 comentários:

Marcelo Oliveira disse...

TLÖN, UQBAR, ORBIS TERTIUS é realmente um dos melhores contos da literatura fantástica. É incrível como Borges joga com o sonho e a realidade, colocando à mostra que o véu discursivo em torno delas é facilmente desvelado.

A partir dos estudos da linguística, pode-se notar em Borges uma queda pelo poder de signos e símbolos e um profundo conhecimento da relação entre esses elementos. Não à toa, desenvolve conceitos linguísticos de um outro povo de uma forma inteligente e sucinta.

Assim como acontece em contos como A Escrita De Deus, JLB (falta uma permuta de b com a pra virar um grupo de super-heróis) se firma como complexo escritor de tramas de poucas páginas.

Um outro escritor fantástico bastante complexo é o também argentino Manuel Puig.

Gostei dessa seção do blog. Estudo artes, de forma autodidata, e Jornalismo na UFBa. Se forem escrever algo mais do tipo e toparem uma colaboração, gostaria de participar.

Por enquanto, os convido a ler as minhas crônicas dos sonhos no recanto das letras (tudo bem, é um site terrível):

crônicas dos sonhos, da introdução à parte V:
http://recantodasletras.uol.com.br/contos/845783
http://recantodasletras.uol.com.br/contos/884810
http://recantodasletras.uol.com.br/contos/890430
http://recantodasletras.uol.com.br/contos/900145
http://recantodasletras.uol.com.br/contos/915360
http://recantodasletras.uol.com.br/contos/983690

Abraços

Ederval Fernandes disse...

Marcelo,

Ficamos gratos com o seu comentário, porém não temos interesse em contribuições externas ao nosso staff.

A seção Um Conto! será publicada todo dia 15 a partir do mês de junho. Esse mês não foi possível pdado ao recesso.

Não li todas as suas crônicas, na realidade li somente o primeiro parágrafo da primeira, mas de uma coisa você tem razão e eu devo concordar: o site é mesmo terrível.

Ass: Staff Moedotecário.