segunda-feira, setembro 15

Seção UM CONTO! - nº 4

4ª Seção UM CONTO!

15/09/2008


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1) O BURRINHO PEDRÊS, Guimarães Rosa
por Rodrigo L.

A música de Guimarães Rosa nunca me passou despercebida. Em todas as páginas que lhe cruzei, percebi-lhe melodia. E O burrinho pedrês é exemplo, talvez maior entre os seus contos (porque nada supera o ritmo de Grande Sertão: Veredas), dessa musicalidade. Não apenas nas constantes referências aos cantos dos vaqueiros e das mulheres do sertão, mas na própria construção sintática de suas sentenças, nas palavras escolhidas e na disposição de parágrafos, pontos, vírgulas - é assim que Rosa compõe. A sucinta descrição da vida de Sete-de-Ouros, que ocupa página e meia no máximo, espera apenas quem a partiture; assim como aguarda um musicista a descrição da "Manhã noiteira, sem sol, com uma umidade de melar por dentro as roupas da gente".

Há quem considere Rosa "metafisicamente primitivo" - e, desde sempre, muita gente se incomoda diante dessa sua franca preferência pela grandiosidade disfarçada sob interiores e homens miúdos: como Riobaldo pode filosofar? Que ousadia permite a Matraga conhecer a vida a fundo? É tolerável, enfim, a pretensão de nos narrar a história de um burro? E o insignificante animal vai só ladeando a boiada - não a persegue e preocupa-se com ela apenas na medida em que ela pode incomodá-lo. Ensimesmado, o burrinho vai se tornando símbolo maior da narrativa - que é repleta de tantos outros. Na visão que os vaqueiros possuem de certos bois (dotando os animais de qualidades morais), nas relações de hierarquia entre os homens sertanejos e em seus códigos éticos, na presença de sorte e azar - em tudo isso, Rosa nos traz não só um grande conto, mas uma tremenda justificativa e prova do valor de sua arte.

2) A AVENTURA DE UM SOLDADO, Italo Calvino
por Davi Lara

Devo começar justificando a escolha deste conto e deste autor para que o leitor se convença de que não desperdiça seu tempo quando freqüenta nosso humilde fundo de poço. Como não pretendo demorar-me, poupo esforços parafraseando o mesmo autor a que me refiro: é melhor ler Calvino do que não ler Calvino. Uma vez sabida essa verdade, passemos às considerações do título em questão.

Se os senhores esperam encontrar a inquietação que marca a construção de uma das grandes obras do séc. XX, há pouco ou nada do fabulista e do experimentador nestas narrativas. Os contos de Amores Difíceis são sóbrios e contidos, tratam de acontecimentos corriqueiros, discretas aventuras que desviam da rotina conhecida e um tanto morta para retornarem a ela. Os motivos para a escolha de A aventura de Um Soldado escapam-me se tento ser objetivo. Se por acaso forço a memória a pedido de um amigo ou para cumprir minhas obrigações bloguísticas, esse é um dos contos que me vêm prontamente. A título de reforço, some-se a efusiva reação do prezado colega moedotecário Eder quando lhe declarei qual conto escolhera para a nova remessa. “Oh, Esse conto é massa, man”.

Uma viúva senta-se ao lado de um soldado numa cabine de trem e, ao longo da viagem, enquanto o infante Tomagra hesita entre investidas contra a matrona, ele não se esquece da condição ambígua que seu uniforme lhe confere. O que há de melhor é a forma como o conto é conduzido, um estilo calmo cria tensões que envolvem principalmente aspectos psicológicos do soldado nas suas tentativas de sedução da matrona impassível. Ademais, está claro que as duas narrativas reunidas no capítulo final Vidas Difíceis, mais longas e mais complexas, são também mais bem acabadas. O que não tira os méritos da prosa serena e técnica das aventuras anteriores.

Dentro da obra de Calvino, talvez não esteja equivocado aquele que se restrinja deliberadamente à sua face mais conhecida das inovações narrativas e das habilidosas fábulas; não resta dúvida que seja esta sua maior contribuição. Mas este outro ramo, herdeiro do séc. XIX – não seria aleatório no nosso caso em particular citar Maupassant e Tchekhov – fornece material suplementar que dialoga e enriquece o fabulador. Ademais, em um caso ou em outro, mesmo em muitos dos contos, se preferirem, pode-se experimentar aquela leitura que permanece presente até quando se está distanciado temporalmente do momento da leitura em si.

3) OS EX-HOMENS, Maksim Górki
por Daniel Oliveira

Górki que me desculpe, mas assim que eu terminei de ler Os Ex-homens* comecei a compará-lo, em não poucos aspectos, ao romance Capitães de Areia, de Jorge Amado. As semelhanças são gritantes: no conto do escritor russo, um bando de vagabundos miseráveis vive à toa, numa pequena e sórdida região, mais especificamente numa hospedaria alugada. Sobrevivem de pequenos furtos planejados e querem distância da polícia e demais autoridades; os cidadãos das redondezas, inclusive, os conhecem - são todos uns bandidos.

Algo familiar? Sem pressa, pois há os personagens: Aristides Fomitch Cuvalda é um capitão - sim, um capitão - administrador do albergue e “chefe” de todos os ordinários - não é necessário descrever seu temperamento. Seu braço direito é o Professor - não estou brincando! -, um dos poucos que sabe ler e o mais sábio e sensato da turma. Para completar, vários dos integrantes da equipe intitulada os “ex-homens” são conhecidos por apelidos: temos o “Bola”, o “Fim”, o “Desperdício” e o “Meteoro”; nem um religioso falta: é o diácono Tarass. Resta saber se Jorge Amado, que escreveu Capitães de Areia no ano de 1937, leu este conto de Górki, publicado originalmente no iniciozinho do século XX. Não me parece improvável essa leitura, se considerarmos que Górki não é nem um pouco desconhecido entre nós brasileiros.

Ao contrário do romance do escritor baiano, Os Ex-homens não possui trama alguma: como escreveu Carlos Heitor Cony, são “vagabundos, bossiaks autênticos, lançados num albergue noturno, à espera do nada e vivendo do nada. Falam muito, discutem muito (...), e, quando podem, comem e dormem. E morrem.” Górki traça um painel desolador da podridão russa, mas não busca uma reviravolta específica: seus personagens, seus “degenerados” pouco se importam com os acontecimentos, com o desespero ou com a própria morte; só querem existir e esquecer que são homens - daí o nome do grupo.

Górki, além de abraçar a causa comunista, era realmente muito feio, mas escreveu uma história que, nas palavras de Carlos H. Cony, é “um dos pontos altos de toda a obra gorkiana”, e, mais ainda, “uma das grandes realizações de toda a literatura universal”. Sua tenebrosa aparência física não o impediu de figurar ao lado (e, na maioria dos casos, acima) dos grandes escritores em língua russa do século XX como Kúprin, Bábel, Búnin e Andreiev.

* o conto Os Ex-homens acabou dando origem a uma peça teatral homônima que proporcionou relativa fama a seu autor.

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