terça-feira, julho 15

Seção UM CONTO! - nº 3

3ª Seção UM CONTO!

15/07/2008


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1) A MORTE DE IVAN ILITCH, Liév Tolstói
por Daniel Oliveira

Na última seção do Um Conto!, eu havia afirmado que “se Tolstói tem o seu A Morte de Ivan Ilitch e Tchekhov tem Enfermaria nº6, Púchkin é o autor de A Dama de Espadas”. Pois então: dos três, o que mais gosto é o de Tchekhov; não tenho condições de julgar qual deles seria o melhor - mas o mais famoso sem sombra de dúvida é A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói.

Reler A Morte de Ivan Ilitch é como ouvir Chega de Saudade no arranjo e na voz de João Gilberto. Toda vez que o fizer, você sempre chegará à mesmíssima conclusão: “eu tinha esquecido de que essa joça era tão boa assim”. Tolstói provavelmente é o maior escritor russo de todos os tempos - uma espécie de Wagner da literatura. Sempre pensou grande: seus romances eram verdadeiros calhamaços e seus contos são maiores do que muitas novelas; chegou ao ponto de fundar uma ideologia - o tolstoísmo - e no fim da vida buscou uma espécie de nirvana. Até a barba dele era enorme (vide foto acima) - não admira que sua literatura tocasse em temas universais, grandiloqüentes e, acima de tudo, moralmente eternos. Esta última particularidade, comum em praticamente toda a literatura russa, é para mim o seu aspecto mais fascinante.

O conto é ambientado nos momentos derradeiros da vida supostamente bem-vivida do alto funcionário Ivan Ilitch. Nos primeiros capítulos, seus amigos e colegas de trabalho tomam conhecimento do falecimento e, na perspectiva de um deles - Piotr Ivánovitch -, o autor descreve a quase indiferença dos presentes no velório para com o morto. Em seguida, o narrador volta ao passado e conta de forma sintética a vida do juiz, por fim enfatizando seus momentos finais. À medida que as páginas são lidas, o coração do leitor se compadece cada vez mais; à medida em que Ivan Ilitch vai percebendo o quão infeliz foi, nós, leitores, vamos admirando a prosa de Tolstói, suas palavras e suas metáforas, além de seu tratamento nem um pouco clemente do delicado tema. Ao final, estamos completamente domados pelo célebre escritor. O que vou contar agora não é mentira: após o término da minha leitura, fui assistir ao telejornal BA-TV, e inconscientemente fiquei esperando que a repórter desse a notícia do falecimento de algum singular cidadão russo.

Leitura altamente recomendável, A Morte de Ivan Ilitch é, para Otto Maria Carpeaux, “uma das obras mais comoventes e mais pungentes da literatura universal, talvez a obra-prima de Tolstói."


2) A PREOCUPAÇÃO DE UM PAI DE FAMÍLIA, Franz Kafka
por Davi Lara

O colega moedotecário, Rodrigo, veio se queixar certa vez de uma pessoa (ou das pessoas, não sei) que pergunta (ou perguntam) por que um livro é bom. "É bom porque é bom." Afirmação que em primeira análise pode parecer estranha, superior - até mesmo arrogante. Mas refletindo sobre, pareceu-me bastante lúcida essa posição. Explico-me: é claro que há críticos e críticos, cabendo aos leitores selecioná-los, o que não pode haver são fórmulas para a crítica literária, como não deve-se exigir a formulação racional para tudo; quando não tem o que se explicar, abstenha-se de explicações. Vejam, por exemplo, Kafka.

O tcheco é um dos escritores mais celebrados mundo afora, e com razão. O pioneirismo de sua obra faz dele um visionário. O que falar, então, do material literário? Creio que nenhum dos moedotecários, para tomarmos um exemplo familiar, negariam-lhe cinco moedinhas numa hipotética resenha. Eu teria que acrescentar mais uma moeda, no mínimo. Portanto, as leituras críticas de Kafka, inúmeras, que se vão acumulando ao longo do século não poderiam ser mais divergentes entre si; e inconclusivas - reconheço que é um exemplo extremo.

O motivo da escolha de A preocupação de um pai de família, de Um Médico Rural, não é outra senão a impenetrabilidade. Toda a obra de Kafka possui em maior ou menor grau um mistério, mas este conto parece ter o drama do não entendimento como tema. Vejamos a descrição de Kafka, tradução de Modesto Carone (abre parêntese para uma homenagem ao tradutor), do insólito Odradek:

"À primeira vista ele tem o aspecto de um carretel de linha achatado e em forma de estrela, e com efeito parece também revestido de fios; de qualquer modo devem ser só pedaços de linha arrebentados, velhos, atados uns aos outros, além de emaranhados e de tipo e cor os mais diversos. Não é contudo apenas um carretel, pois do centro da estrela sai uma varetinha e nela se encaixa depois uma outra, em ângulo reto. Com a ajuda desta última vareta de um lado e de um dos raios da estrela do outro, o conjunto é capaz de permanecer em pé como se estivesse sobre duas pernas."

Talvez seja um problema meu, mas sinto uma enorme dificuldade em conceber tal objeto. Cada vez que leio sua descrição, paro, leio novamente, e é como se o visse pela primeira vez. Vem e se perde. É essa a minha relação com Kafka. Assim como o pai de família preocupa-se com a finalidade de OdradeK, enquanto este deverá sobreviver a ele, Kafka permanece indecifrado, ou desvendado por vários ângulos diferente e que se excluem - o que dá no mesmo -, enquanto há empenho em demasia para moldar-lhe uma face definitiva. Talvez seja atributo da literatura o quê de inexplicável, necessário o juízo intuitivo, e não devamos limitá-la a explicações. Desconfio; talvez.


3) REFRESCO DE MANGA, Luiz Pimentel
por Eder Fernandes
Infelizmente não encontramos nenhuma foto de Luiz Pimentel. A foto acima é de Emerson.

No prefácio de Doze Contos Peregrinos, Garcia Marquez confessa: “o esforço de escrever um conto curto é tão intenso como o de começar um romance”. Confissão tão óbvia serve como advertência àqueles que pensam o conto como um gênero menor. Acreditem vocês: são muitos os que pensam assim. E isto se acentua no caso do contista se voltar a acontecimentos de uma parcela da população cujas aspirações metafísicas sucumbem à ordem da sobrevivência. Piora se esta obra não for, ao menos, panfletária. Chamam-no de rasteiro, gratuito, covarde.

Em meio a esses equívocos, Luiz Pimentel faz sua literatura. Não me recordo de um conto seu que falasse de um tema profundo da condição humana; ou por outra, não me recordo de uma narrativa sua que não tenha falado de tais temas, no entanto com uma linguagem fresca, rápida, despretensiosa que costuma enganar os leitores graves, aqueles que têm vasto apreço pela alegoria e desprezam os fatos cotidianos.

O conto em questão, Refresco de Manga, ilustra bem o que eu estou querendo dizer. Em um resumo grosseiro, a história trata da visita de um jovem ao antro onde sua irmã mais velha trabalha. Um bordel. Ela virou prostituta depois que brigou com a mãe e saiu de casa. O tema central, como muitos possam achar, não é o resgate da honra da família, o jovem não vai a busca da irmã para arrancá-la de lá. Não. São as relações fraternais travadas entre o narrador-personagem e sua irmã (é aí que o título faz tanto sentido) e a inocência dele a despeito daquele universo repugnante que fazem do conto uma peça literária. O autor subverte o óbvio de forma cálida, abrandada.

Falemos a verdade. Luiz Pimentel não é um contista excepcional, já que para isso temos os nossos gênios. Contudo é um autor que, à sua maneira, vem fazendo uma literatura eficaz e ascendente. Não diria se tratar de alguém que precisa ser lido, mas também não diria que precisa ser ignorado. A sugestão está feita.


4) HARÉM, Elieser Cesar
por Rodrigo L.
Também não encontramos foto alguma de Elieser. Quem aparece aí encima é Dylan Thomas.

Nascido em Euclides da Cunha, no sertão baiano, Elieser Cesar tem seus quarenta e tantos anos e uma saudável cota de bom humor. Nos correntes dias, em que o artista baiano ou brasileiro exulta de uma seriedade e de um tom denunciador que - para quem está de fora - são só patéticos, Elieser escreve Harém. Não há, neste conto mínimo, de duas páginas apenas, uma grande lição a ser imposta ao leitor. O autor não pretende, com seu texto, radiografar a alma moribunda de sua terra - sem utilização meramente estética e vazia da violência, da apatia ou da miséria, Elieser promove um simples e bem humorado exercício estilístico.

Não se trata, contudo, de um conto perdido; não se desenvolve do nada para no nada findar-se. O sonho erótico do jovem estudante - que se imagina venturoso dono de um harém e de uma virilidade incansável - apresenta uma relativa quantidade de referências reais e palpáveis. Entre elas, a feminilidade reprimida da mulher afegã: "A excitada muçulmana balia um pequeno gemido de cabrita saciada". Elieser, ademais, encontra uma louvável forma de superar o delírio e recobrar a realidade: após as sombrias descrições das escravas sexuais tornando-se bruxas horrendas, consegue ainda assim preservar o riso do leitor.

Método semelhante pode ser encontrado em outros contos do autor (tais como Akizar, Tesoura de Ouro e o longo e belo O Trono do Desenganado) e, embora sua escrita, por vezes, debata-se diante dos mesmos problemas que, nos primeiros parágrafos, apontei como distantes de Harém (sobretudo nos contos A Garota do Outdoor e O Primeiro Carnaval de Luciano), a faceta mais descompromissada com uma suposta mensagem e mais preocupada com o trabalho estético faz Elieser sobressair-se na atual literatura baiana e brasileira como uma saudável exceção.

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